Tocar para crer

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Depois daquela noite tensa, as coisas mudaram na casa. Levantei para escovar os dentes e, ao passar pela cozinha, vi que meus pais estavam lá. Ela, de roupão, perto do fogão, mexendo no armário acima. E ele, sentado no balcão, com uma caneca na mão.
Passei depressa, pois não queria ser notado. Entrei no banheiro, peguei minha escova no armário e pus a pasta de dente nas cerdas. Quando alguém começou a bater na porta do banheiro.

- Yvonne? - perguntei, confuso por não escutar ninguém.

Mas a maçaneta redonda da porta começou a se mover para os lados, devagar, sorrateiramente. "Pode ser ela me pregando uma peça", pensei por um segundo, mas depois desisti da ideia.
Quando a maçaneta parou seu movimento contínuo, pus a mão devagar em volta da mesma, e a girei em sentido anti-horário.
E para a minha não tão grande surpresa, não era ninguém.
Terminei de escovar os dentes, e desci as escadas. Yvonne já estava na cozinha.

- Legal. Quem estava querendo usar o banheiro? É só pedir licença e esperar, porra. Não precisava bater tão forte.
- Do que você está falando? - perguntou minha mãe, com o bule na mão.
- Já essa hora, Dário? - disse Yvonne, enquanto passava por mim e ia em direção a escada. - Segunda é a minha formatura. Quero te ver bem até lá, tá bom?

Entendi aquilo como uma alfinetada, mas deixei passar. Afinal, eu já tinha dito tudo o que queria na noite passada.

- Aliás, Dário, você vai para a casa da vovó Judy hoje. - disse meu pai, levando a caneca de porcelana até a boca.
- O quê? - perguntei surpreso.
- Eu e seu pai decidimos que vai te fazer bem passar um tempo com eles. Nada melhor que o ar puro do campo. Agora, vá arrumar suas coisas.

Eu não ia até a casa dos meus avós há muito tempo. Era um pouco longe, mas ainda ficava em Green Mountain. Era uma casa antiga. Seu estilo vitoriano poderia ser visto há quilômetros. Possuía duas e velhas portas de entrada. Suas vidraças amareladas e rachadas davam a casa um ar de solidão. Não possuía muitas casas por perto. Meu avô dizia que seus vizinhos estavam surdos ou mortos, de tão velho que era aquele trecho rural. A casa possuía 5 quartos, muito espaçosos por sinal. Se tirassem todas as camas e armários de lá, daria um ótimo salão de festas. Não sei quantos anos a propriedade tinha, mas a vovó fala que desde que os Campbell passaram a existir, tomaram domínio daquela terra. Meu avô me levou a um rio perto da casa para pescar uma vez. Apesar da nossa tentativa falha, ele só queria passar um tempo comigo. Sua casa cheirava a gente velha, justificado pelo fato de ali morarem dois vegetais (meu pai odiava quando eu os chamava assim). Passar um dia ali era o meu inferno pessoal. Pouco antes da casa, havia um lago com uma água esverdeada cheia de lodo, e por lá passava uma ponte de madeira esburacada. Não sei se alguém consumia aquela água, mas sei que lá, o cheiro de mato era predominante. Chegando na casa, minha avó estava sentada em sua cadeira na varanda. Era lá que passava todas as manhãs. Um de seus olhos não enxergava muito bem. Então, meu avô quem cozinhava e fazia a maior parte das tarefas de casa. Mesmo meu pai insistindo em colocá-los numa casa de repouso, o vovô recusava e batia o pé no chão afirmando que não sairiam dali.

- Quem está aí? - a voz rouca ecoou pela casa inteira. Era a minha avó. Usava um vestido florido, que variava entre rosa e verde, enquanto carregava sua bengala velha e suja. Caminhou em direção a mim e pôs a mão no meu ombro, após várias tentativas errôneas. - Ah, é você, Dário querido! Quem mais está com você?
- Bem, o meu pai também está aqui, mas acabou ficando lá fora. Quer que eu o chame? - perguntei apontando para fora, mas depois baixei a mão, já que era inútil.
- Não precisa, querido. Seu pai nem gosta desses ares.

Não entendi aquilo como uma resposta, mas relevei por conta de sua idade. Pobrezinha! Já devia estar delirando.

- Arthur! Onde está você? - sua voz rouca ecoou pela casa mais uma vez.
- Estou aqui, querida! Na cozinha. - respondeu meu avô, depois do corredor.
- Venha, querido! Preciso listar algumas coisas para o mercado. - disse ela, pegando minha mão e virando às costas. Mas quando virou, ela parou por alguns segundos, e ainda de costas, puxou minha mão novamente.
- Sente-se aqui! - disse ela, sentando no velho sofá esverdeado e batendo a mão levemente numa cadeira um pouco a frente, pedindo que eu sentasse.
- Você está fugindo de alguém? - perguntou ela me olhando fixamente, com seus olhos azulados.
- Não. Meu pai me mandou aqui para...
- Não, não falo do porquê está aqui. Mas sim em qual situação você se encontra. Você viu uma coisa, Dário. Uma coisa terrível! Uma coisa somente vista por aqueles que não enxergam com os olhos mundanos.
- Como assim, vovó? Eu não entendo.
- Você viu alguém, não viu? Alguém que cometeu o pior dos pecados!
Como ela sabia daquilo? Estava se referindo ao homem no escuro? Ou era só mais uma alucinação de uma velha senhora isolada do campo?
- Eu vi uma coisa, vovó! Uma coisa horrível! Uma coisa coberta de...

Cortes na AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora