Caixão lacrado

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  Meu pai ajudou a levantar minha mãe e a sentou na cadeira da mesa. Estávamos todos reunidos na cozinha. Eu era o único de pé e não queria sentar. Só queria respostas. Somente isso.

  - Suas justificativas não são convincentes. Dizer que me internaram para eu melhorar. Não faz nenhum sentido. Em algum momento pensaram em mim? No quanto eu iria sofrer naquele lugar? Eu sofri tratamento de choque por uma semana. Eu tive sérios traumas psicológicos e corporais, e vocês… vocês nem ligaram para isso! E ainda nem disseram a vovó! - não aguentei, e comecei a chorar. 

  Yvonne levantou e veio me abraçar. Meus pais ficaram calados. Mas dava pra ver em seus rostos que estavam arrependidos. Minha mãe já havia chorado horrores desde a minha chegada. E meu pai ainda chegou a me abraçar - mesmo que só por um segundo.

  - Sua avó… ela morreu, filho! - disse meu pai, olhando seriamente para mim.

  - Como assim? Vocês nem me avisaram? - perguntei, continuando a chorar.

  - Ela faleceu no dia que você… - disse Yvonne, sem concluir a frase.

  - Sinto muito, filho. Mas o que aconteceu com você não foi a única razão para internamos você… - disse minha mãe, olhando em seguida para o meu pai, que estava cabisbaixo.

  - Então, o que é? Qual o outro motivo? - perguntei, cruzando os braços.

  Eles se entreolharam e disseram: 

  - Iremos nos divorciar.

  Yvonne e eu olhamos com cara de espanto em direção a eles, o que me fez perceber que ela também não sabia dessa notícia. Ficamos alguns segundos quietos, mudos. 

  - Por que? Vocês estavam tão bem. Vocês estão bem! - argumentei.

  - Muitas coisas aconteceram nesses meses, Dário. E queríamos poupar vocês. Mesmo antes de você ir embora, já estávamos pensando na possibilidade de separação. Sentimos muito, e sei que nada irá mudar em nosso comportamento com vocês. - disse meu pai, se levantando.

  - Nada vai mudar? Pai, tudo já mudou. Tudo mudou a partir do momento que vocês me trancaram naquele maldito hospício. Vocês… vocês me traíram e estão fazendo isso de novo. E vão fazer mais vezes, eu sei. - exclamei, me desprendendo dos braços de minha irmã que estava agarrada a mim.

  - Chega, Dário. Melhor irmos lá pra cima. - disse Yvonne, me puxando pelo braço até a escada. 

  Fomos para o quarto dela e deitamos na cama. Conversamos por horas sobre como aquilo mudaria absolutamente tudo! Ela me chamou para passar uns dias em sua casa na cidade vizinha e eu aceitei. Até porque eu não tinha o que perder indo pra ErinsWood, e não tinha a ganhar ficando em casa. Dormimos mais cedo, por volta de 21:45. Eu dormi rápido. Nem sabia mais como era dormir em um colchão fofinho como aquele. Aquela era a primeira noite em meses que eu não via "o homem". E agradeço a Deus por isso!
  Acordei depois de minha irmã, pois estava muito cansado. Ela havia saído com minha mãe para comprar algumas coisas para seu novo apartamento. Fiquei em casa com meu pai, que estava fazendo alguns ajustes no carro na garagem. 
  Desci para tomar café e vi um post-It de Yvonne na geladeira, que dizia:

  "Saímos para fazer compras. Ah, preciso que faça uma limpeza no meu computador pra mim. Pode fazer isso, Bill Gates?"

  Achei o bilhete engraçado pelo fato de eu ter feito curso de Informática antes e mesmo assim para fazer uma limpeza nem precisa ser cursado.
  Terminei de comer, subi para o quarto dela e sentei na cadeira da escrivaninha. Fiquei totalmente surpreso ao ver quanto lixo existia no computador de Yvonne. "Acho que ela nunca entrou nem na lixeira nesse PC", pensei. Já fazia mais ou menos uma hora que eu estava fazendo aquele serviço, quando escutei um grito e um barulho ensurdecedor de alguma coisa caindo vir do andar de baixo. Mas não era o meu pai. Era uma voz diferente. Desci correndo e chamando pelo nome dele. Cheguei até a garagem e, vi uma cena que iria me marcar pra sempre:
  Meu pai estava deitado no chão, e sua cabeça estava esmagada por um motor de carro que ficava em cima de uma das prateleiras. Seu rosto era irreconhecível pois o objeto havia esmagado toda a sua face. Corri para fora com as pernas tremendo e comecei a vomitar sem parar. 
  Depois, entrei para dentro e liguei às pressas para minha mãe. Em seguida, chamei a polícia e logo chegaram para cercar a cena.
  Quando minha mãe e irmã chegaram, eu estava em choque, no sofá da sala. Yvonne se atirou nos meus braços e chorou até ficar praticamente sem forças. Minha mãe chegou a desmaiar e colocamos ela na cama, tentando acordá-la. Aquele era um dos piores dias da minha vida. Meu pai estava morto, minha irmã não morava mais em casa, e minha mãe à beira de um colapso. 
  Depois de muito investigar, a polícia recolheu o corpo e saiu da nossa casa. Nós ficamos o tempo todo juntos. Só queríamos ficar sozinhos. Por mais que minha mãe não tivesse mais todo aquele amor pelo meu pai, ela ainda o amava de toda forma. E ela foi quem mais sentiu isso. Ela passava horas olhando pra cima, e do nada começava a gritar, e cabia a eu e minha irmã de acalmá-la. E assim foi durante dias…
  Grace veio na minha casa no dia seguinte. Me deu os pêsames e me abraçou. 

  - Eu sinto muito, amor. Imagino como esteja agora. - ela disse, me abraçando e me beijando em seguida.

  - Eu matei meu pai! 

  Essas palavras saíram da minha boca rapidamente, talvez até sem meu consentimento.

  - O quê? - ela olhou pra mim séria, porém confusa.

  - Eu fiquei no quarto o tempo inteiro. Ele estava na garagem. Eu devia ter ficado com ele. Ele não teria… aquilo não teria acontecido. Eu podia ter impedido. Eu sei que podia… 

  - Não se culpe. Sei que é difícil, mas por favor, não se culpe por isso. Foi trágico e horrível. Mas por favor, não foi culpa sua e você não tinha como ter impedido. - ela pôs minha cabeça no ombro dela e me fez cafuné. 

  Passamos alguns minutos conversando, mas ela foi embora e, logo depois, eu estava querendo chorar. 
  O corpo do meu pai chegou dias depois, por causa do seu estado desfigurado. O seu velório teve caixão lacrado, obviamente. Ninguém era obrigado a ver a mesma cena que eu.
  Fiquei o tempo todo, parado, apático, olhando para o nada, somente recebendo os pêsames de todos presentes. Minha mãe teve que ser dopada nesse dia pois, ao ver o caixão, ela se desesperou e começou a gritar.
  Eu estava sentado lá fora. Tinha saído para tomar um ar. Estava sozinho. O frio da noite me dava conforto e o vento beijava meus cabelos. Minha vida estava acabando aos poucos e era culpa minha, eu sabia disso. Senti uma sensação de cautela no ar e olhei para o lado em direção ao meu quintal atrás da casa. E ele apareceu de novo. O homem. Mas eu nem liguei. O encarei por alguns instantes e depois voltei para a minha tristeza rotineira, sem me importar se ele estava lá ou não. Ele sempre estaria lá.

Cortes na AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora