Duas ventanias

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  Discussão. Pode ser conceituada como: um exame minucioso sobre um problema ou um assunto. Mas o que estava acontecendo naquela noite era mais que isso.

  - YVONNE! YVONNE! - o grito de minha mãe ecoou pela casa.
  Fui andando atrás dela, acompanhando seus passos, mas não seus pensamentos. Minha irmã desceu alguns degraus da escada, mas parou na metade.
  - O que aconteceu? - disse ela, com o cabelo amarrado e fones de ouvido.
  - Precisamos conversar, mocinha!

  Meu pai entrou pela porta e em seguida, fechou todas as janelas.

  - Está vindo uma grande ventania. Acabou de sair no rádio. Então, o que houve? Por que me ligou? - disse ele, tirando a gravata e arregaçando as mangas da camisa.
  - Vou te explicar o que aconteceu. Sua filha não estava vigiando o irmão como era sua obrigação. - disse minha mãe, apontando para Yvonne e em seguida, pondo as mãos na cintura.
  - O quê? - minha irmã pôs também as mãos na cintura. - Isso não é minha obrigação, mãe. E outra, ele nem estava em casa. Aliás, ele saiu sem me avisar.
  - Eu estava na casa de Grace. Passei no máximo 5 minutos lá porque tive enxaqueca depois. - expliquei, enquanto sentava no banco do balcão.
  - Você bebeu? - perguntou minha mãe.
  - Não, mãe! Eu…
  - Por que perguntou isso? - indagou meu pai, cruzando os braços.
  - Porque ele viu uma coisa… na garagem. - respondeu minha mãe com um olhar fixo, sem pestanejar, que quase me assustou.
  - O que viu? - perguntou Yvonne, com a mão esfregando o peito.

  Pensei em não contar. Mas o que adiantaria? Contando ou não, eles não acreditariam.

   - Tinha um cara na garagem, mas não era uma pessoa!

   Eles pararam de falar, mas continuaram me encarando, com expressões de desentendimento.

  - Não está falando nada com nada, Dário! Primeiro você diz que viu alguém lá, e depois diz que não era uma pessoa. O que vai ser o próximo? Viu um alien? Um zumbi? - disse meu pai, enquanto gesticulava e aumentava a voz.
  - Calma, pai… Não precisa se desc… - falou Yvonne, com uma voz suave, mas logo interrompida pelo meu pai.
  - Eu não estou me descontrolando. Eu só… - interrompeu ele, enquanto suspirava de stress. - eu só quero entender o que está acontecendo. Você disse que viu uma coisa, então só quero saber dessa história toda.
  - Eu estava vindo da casa de Grace. Estava com muita dor de cabeça e quando eu cheguei no portão, olhei para a garagem e eu vi. Era um homem, mais ou menos da minha altura. Ele estava parado, e depois apontou para a rua, como se apontasse uma direção para eu seguir . Então, eu corri, tropecei algumas vezes, mas consegui chegar no tribunal. A mamãe viu a minha reação. Eu não estou mentindo. Eu cheguei a tremer de medo.
  - Mas já foi embora, não é? - perguntou ele, olhando seriamente para mim.
  - Como assim? - perguntei, sem entender o questionamento.
  - O homem na garagem. Ele ainda está lá?

  A grande ventania começou lá fora. Os fios dos postes balançavam e a lua começou a ser coberta pelas nuvens. As árvores soltavam folhas que batiam nas janelas e faziam barulho. Algumas chegavam a entrar dentro de casa. A ventania estava mudando tudo lá fora menos o que eu sentia alí dentro.

  - Me responda! O homem ainda está lá?

  Não respondi. Mas meus olhos começaram a lacrimejar e fui tomado pela angústia já residual.

   - Já chega. Vem comigo!

  Ele agarrou meu braço, e me puxou em direção a porta. Não aguentei e logo comecei a chorar.

   - Marcos, o que está fazendo? - perguntou minha mãe, nos seguindo.
  - Ele tem que perceber que nem tudo o que vemos é real. Temos um histórico absurdo de depressão na nossa família. Mas não de esquizofrenia, e não quero que você seja o primeiro. - disse ele, apertando cada vez mais o meu braço.

  Ele entrou comigo na garagem e me empurrou para perto do armário. Acendeu a luz e cruzou os braços.

   - Viu? Não tem nada. Pelo menos não… Que droga é essa? - disse ele, se agachando no chão em seguida.

  E estava lá de novo. Aquele líquido no chão da garagem. Aquela coisa escura.

  - Será óleo do carro? - perguntou ele, tocando a solução escura.
  - Não. Isso é muito fino para ser óleo. Parece sangue. - disse minha mãe, também na garagem, ao meu lado.

  Meu pai pegou um pano ali perto e limpou o chão. Mesmo assim, a mancha se sobressaiu.

   - Já chega por hoje. Vamos entrar para dentro. A ventania vai aumentar. - disse minha mãe, enquanto colocava a mão no meu ombro e me conduzia até a porta da cozinha.

Meu pai continuava na sua tentativa falha de limpar o chão.
  Chegando na cozinha, vimos minha irmã conversar com um rapaz na porta. Ele era do nosso bairro, e era um pouco mais velho que ela.

   - Já não está na hora de ir, rapazinho? - perguntou minha mãe, entrando pela mesma porta.
  - Ah… sim, senhora. Eu só vim… - interrompeu ele, depois de ver o olhar feroz de Yvonne em sua direção. Eu sabia da história envolvendo os dois, mas não quis comentar. Não naquele momento…
  - Então… veio para… - minha mãe quis explicações dele estar na nossa porta no meio de uma ventania.
  - Não, nada… esquece! Adeus Sra. Campbell! - despediu, saindo pelo quintal.

  Yvonne fechou a porta e pegou o telefone.

  - Posso saber quem é? - perguntou minha mãe, abrindo a geladeira.
  - Um amigo, mãe. Ninguém importante!
  Yvonne olhou pra mim com repreensão, e voltou a fuçar seu telefone.
  - Então, mais um de seus delírios, Dário? Não tinha ninguém lá não era mesmo? - perguntou ela, com ar de deboche.
  - Não. Mas pelo visto tinha alguém de verdade aqui. - respondi, com um sorriso sarcástico e olhar de deboche.

  Meu pai entrou pela porta, com o pano sujo de "seja lá o que aquilo fosse" na mão.

  - Então, quem era aquele na porta?
  - Ah, aquele? Era o traficante que vende drogas para Yvonne. - respondi, enquanto olhava seriamente pra ela.

  Houve um ar de surpresa, justificado pelo fato de meus pais não saberem que minha irmã era usuária de Adderall.

  - O que você disse? - perguntou meu pai, com a mão na cintura.
  - É isso mesmo, mamãe e papai. A sua perfeita filha quase advogada é dependente química. - respondi, aumentando o tom de voz sem medir palavras ou impactos.
   - Como você diz isso? - perguntou Yvonne, com lágrimas nos olhos, resultado do misto de raiva e vergonha.
  - Eu digo com quem me chama de maluco ou delirante. - respondi, ferozmente.
  - Parem, parem, parem! - gritou minha mãe, levantando as mãos. - Do que vocês estão falando?
  - É verdade, mãe. - respondeu minha irmã, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. - Eu uso Adderall. Uso para conseguir focar nos estudos, já que essa família não exige nada menos que a perfeição.
  - Meu Deus, Yvonne. Você é tão inteligente, tão bonita. Isso leva a decadência, sabia? - perguntou minha mãe, chegando perto dela.
  - Quer falar mesmo sobre decadência, mamãe? - perguntei, enquanto a chuva começava lá fora e ficava cada vez mais forte.
  - Do que você está falando agora? - perguntou meu pai, parando ao meu lado.
  - A mamãe voltou a fumar. - respondi cruzando os braços e fechando a cara. - Então, não vem falar sobre vício e decadência, quando você sabe que já passou por isso há alguns anos e teve que parar de fumar para não morrer.
  - Dário, fica calmo. Você… - disse meu pai, pondo a mão no meu ombro, mas sendo interrompido por mim.
  - Não! Chega de querer ficar calmo. Chega de tentar ser o filho perfeito, o aluno perfeito. E você… - apontei pra minha mãe. - pode parar de tentar mostrar que possui o pulmão perfeito. E você… - apontei pra Yvonne. - para de querer mostrar aos outros que possui um intelecto mais avançado ou uma faculdade melhor, quando você só faz Direito pra querer seguir os passos da mamãe... Eu estou cansado! Cansado do perfeccionismo dessa família. Vocês são como manequins! Querem ser de plástico e ferro, mas eu não. Eu sou de carne, ossos e sangue. E quero continuar sendo. Possuo erros como qualquer um de vocês. Então, não fiquem aí parados na minha frente, querendo me dar sermão sobre como agir, ou como perceber as coisas, sendo que nem vocês não se percebem.

  O que eu falei deve ter ficado marcado em suas mentes, com um desenho no papel. Subi os degraus para o meu quarto e entrei. Pulei na cama e enfiei a cara no travesseiro e gritei, começando a chorar. Não sei se ouviram, mas torço por isso.

Cortes na AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora