O homem sangrento

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  Abri os olhos. Desafiei a ciência e abri os olhos. Mas ao olhar ao redor, vi que a ciência não mais valia na minha situação. Eu estava de pé em um local escuro. Tentei me mexer mas meus pés não desgrudavam do chão. Eu estava preso. Meus braços, pernas, rosto e pescoço ainda ardiam. Eu tentava olhar para baixo com o intuito de ver o resto do meu corpo, mas meu pescoço estava duro como pedra. 
  Olhei em volta mais uma vez e consegui me situar. Era o meu quarto. Eu estava de pé em frente a minha cama, e havia alguém deitado nela. Tentava abrir minha boca, mas minhas tentativas eram inúteis. Eu ainda podia sentir o sangue escorrendo pelo meu corpo. Olhei para minha cama novamente e, a partir daqui, prezado leitor, preciso que abra sua mente e acredite no que eu vou dizer. 
  Após olhar para frente, vi eu mesmo deitado. Eu tentava me mexer mas não obtinha sucesso. Eu abria e fechava as minhas mãos, mas elas estavam super frias e endurecidas. O "outro eu" - que é como vou chamar daqui pra frente - ficou paralisado ao me ver, mas ele não via meu rosto. Ouvi o barulho da geladeira na cozinha e tudo escureceu. Estava um breu total. Não enxergava nada, até que voltei a ver.
  Ainda estava escuro, mas já com um pouco de luz onde dava para me situar com maior rapidez.
Eu estava na garagem. Era noite. Eu continuava guardado no chão, por algum motivo desconhecido. Até eu olhar para o portão e ver o "outro eu" parado do lado de fora. Ele estava apavorado. Comecei a entender o que estava acontecendo, mas não vou comentar agora. Comecei a tentar falar "não", mas minha boca não mexia ou abria. Com o intuito de ver o que acontecia, ergui meu braço, apontando para a rua, com muita dificuldade, mas consegui. Ele saiu correndo para longe da casa e pude observar que meu sangue escorria até a calçada da garagem. 
  Tudo escureceu novamente e, dessa vez, foi fácil me situar. Eu estava em frente a porta do meu banheiro e, ao julgar pela luz entrando pela janela, era dia, de manhã, especificamente. E como a porta estava trancada e eu não conseguia tirar os pés do chão, criei força em meus braços e pus a mão na maçaneta. Girei, sem forças, mas ninguém abriu. 
  Tudo ficou preto mais uma vez e, dessa vez, eu não conseguiria me situar nem se quisesse. Eu nunca havia estado naquele lugar antes. Era um quarto um pouco escuro. Mas eu estava do lado de dentro em frente a porta. E depois de muita força de vontade, consegui me arrastar para mais perto dela, até olhar para trás e ver que eu não estava sozinho. Havia mais... não digo pessoas. Mas sim, coisas. Haviam coisas totalmente desfiguradas que paravam para olhar pra mim, com seus olhares sem vida. Pus a mão na maçaneta e comecei a querer abrir a porta, entretanto estava trancada. Tentei gritar, mas minha boca que parecia totalmente seca e rígida não contribuiu. 
  O escuro tomou conta mais uma vez, e eu vi que estava num dos corredores da escola. E ao olhar para frente, vi o "outro eu" passar, olhar para mim e continuar andando. Eu tentei me mexer. Tentei falar, eu juro. Mas não conseguia.
  De repente, sumi de novo. Me vi num beco escuro e sujo, mas havìam pessoas ali. Eu estava na formatura de Yvonne. Olhei a frente e vi o "outro eu" sentado entre meus pais. Me emocionei ao vê-los juntos e comecei a chorar. O "outro eu", que estava sentado, olhou para mim e se levantou, enquanto todas as pessoas olhavam. 

"Eu tô vendo você!", ele disse, vindo em minha direção.

  Tudo se apagou novamente e demorou a se iluminar. Quando tudo clareou, me vi no corredor da cozinha. Olhei para frente e vi Brenda, fechando a geladeira. Ela se assustou e derrubou uma garrafa de refrigerante que tinha em suas mãos. Ela andava para trás, até esbarrar no banco do balcão e cair no chão. Estiquei minha mão, para que ela me reconhecesse, mesmo que por um minuto. Eu tentava falar, mas minha boca não abria. Ela começou a gritar e tudo escureceu, mais uma vez. 
  Comecei a me sentir como se estivesse numa chuva. Porque eu realmente estava. Eu estava na minha rua. Era a noite da chuva de sangue. Eu estava virado de frente para minha casa. Quando vi o "outro eu" tentando abrir a porta do lado de dentro. Ele olhou pela janela e conseguiu me ver.

"QUEM É VOCÊ?", ele gritou. Ele conseguiu abrir a porta e tudo escureceu. 

  Quando voltei, estava em um corredor pouco iluminado. Eu conhecia muito bem aquele corredor. Era o mesmo corredor do quarto em que fiquei no Nova Alvorada. E a minha frente, estava o meu quarto. O "outro eu" estava deitado na cama, e começou a chorar ao me ver. Eu também comecei a chorar ao me ver naquela situação, naquele lugar novamente. E aquele mesmo lugar apareceu para mim várias vezes, várias noites, até o "outro eu" não chorar mais ao me ver. Ele apenas me olhava de volta, com olhar cansado e apático. 
  Tudo escureceu, e eu apareci na garagem de casa. Era dia. Estava tudo claro. E fiquei totalmente em choque e também emocionado no que vi. Era meu pai. Era ele. Estava bem e vivo. Ele estava consertando o carro, de costas para mim. Eu tentava chamar o nome dele, mas eu só balbuciava sons que nem eu entendia. Ele me ouviu, se virou e sua cara de espanto e total terror se fez presente ao olhar e me ver naquela situação: ensopado de sangue e com cortes profundos por todo o meu corpo. Ele se atrapalhou enquanto dava passos para trás e acabou batendo na prateleira que sustentava o motor. Então ele caiu no chão, e o motor esmagou seu rosto e crânio. Comecei a gritar pelo que havia visto. Eu vi meu pai morrer. Foi minha culpa. Ele morreu porque me viu. Porque se assustou ao me ver. Foi minha culpa! Totalmente minha! 
  O breu tomou conta mais uma vez, e quando me vi, estava parado no meu quintal atrás da casa. Era noite. A minha frente, do outro lado, estava o "outro eu", sentado, olhando para mim sem medo algum. Eu reconhecìa aquele terno. Era o velório do meu pai.
  Estava tudo claro para mim. Todas as vezes que eu o via mas nunca enxergava o rosto dele. Tudo fazia sentido. Me convenci totalmente daquilo. EU ERA O HOMEM SANGRENTO! Era eu. De alguma forma, que até agora não sei, eu, em vida, estava me vendo já no pós-vida. Eu me assombrei durante grande parte da minha vida, tanto no sentido psicológico como no real. Era eu. Como minha mãe havia me dito uma vez: os espíritos podem viajar por tempo e espaço. E aquele era meu castigo, por ter cometido o pior dos pecados: o suicídio. A convicção tomou conta de mim, junto com o breu total, que me puxou de volta para a noite que eu o vi pela primeira vez, a frente da minha cama, continuando esse ciclo eterno em meu inferno pessoal.

Cortes na AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora