A sexta serpente

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  Nossos pais chegaram tarde, e nos encontraram sentados na sala. Não comentamos nada. Afinal, nem sabíamos formular uma frase para aquilo tudo. Yvonne estava confusa. Ela sempre pensou que "o homem" (como vou começar a chamá-lo a partir de agora) fosse confusão da minha cabeça. Mas depois que outra pessoa também viu aquele ser horrendo, só serviu para abrir nossos olhos, por bem ou por mal.

- O que você acha que é? - perguntou, apática.

- Como assim? - questionei sem entender.

- Bom, você viu. Então, sabe mais do que eu... Então?

- Eu não sei. Você sabe que a gente nunca foi de acreditar muito nessas coisas. Mas depois do que a vovó disse... - interrompi, para que a paranóia não se voltasse para minha cabeça.

- O que a vovó te disse? - perguntou, fastando para frente, para mais perto de mim.

- Segundo ela... nós, os Campbell, temos um dom de sabermos e vermos coisas.

- Dom? Está mais para maldição. - respondeu, com tom de contrariedade.

- Já chega. Já deu pra mim.

Levantei, e comecei a andar em círculos, enquanto respirava fundo.

- O que foi? Está tendo outra crise? - perguntou Yvonne, de pé também.

- Não, é que... Eu não aguento mais. Deitar a cabeça no travesseiro e não saber se vou acordar no meio da noite e ver aquela coisa é agoniante.

- Eu tenho uma ideia. Bem, não vai resolver seus problemas, mas vai ajudar a saber mais sobre isso. - propôs ela, cruzando os braços e sorrindo sarcasticamente.

- Como assim? - perguntei.

- Vamos ao cartório amanhã. A mamãe é amiga da senhora que trabalha lá. Vai ser fácil conseguir informações.

- Informações de quê? - questionei, com mais dúvidas ainda.

- Dário, parece que Deus te deu essa altura toda e esqueceu de te dar o raciocínio. A gente vai perguntar se a casa tem histórico de crime ou assassinato, só isso explicaria tudo.

- Por que? - perguntei.

- Eu li uma vez que lugares que foram palco de alguma tragédia servem como uma prisão para os espíritos.

- Mas não faz sentido. Quer dizer, nem tudo. Eu já vi ele fora da casa. Na escola, na sua formatura...

Notei que ela ficou cabisbaixa. Talvez pelo fato de eu ter estragado a melhor noite da vida dela.

- Não importa. Vamos no cartório amanhã logo cedo. Assim você não vai se atrasar para a escola. - sugeriu ela, indo em direção a escada.

- Yvonne, será que eu posso...

- Dormir comigo hoje? Claro. Sabia que não ia conseguir viver sem mim. - respondeu sorrindo, enquanto subia as escadas.

  Aquela sim era a Yvonne que eu conhecia. Senti que podia contar com ela pra tudo. E eu realmente podia.
Acordamos cedo, e tomamos café depressa. Nossos pais estranharam o porquê de toda aquela pressa. Mas só inventamos um álibi qualquer e entramos no carro. Dirigimos até o cartório e fomos até a senhora que cuidava dos documentos. Ela era baixa, tinha cabelos totalmente brancos e pele enrugada, por conta da idade.

- Bom dia, Sra Jessel! - cumprimentou Yvonne.

- Ah, Yvonne. Como cresceu, querida! Dário, é você mesmo?

- Ah, oi! Como vai, Sra Jessel? - respondi, abraçando a doce senhora.

- Vou bem. Sentem-se! Como vai sua mãe?

- Ela está bem! Mas estamos aqui para outro assunto. - respondeu Yvonne, enquanto se sentava junto comigo.

- Vão vender a casa?

Yvonne olhou para mim buscando uma resposta.

- Não, Sra Jessel. É que estou fazendo um trabalho para a escola, e eu gostaria de saber o histórico da casa, antigos donos e esse tipo de coisa. E já que foi a senhora que vendeu a casa para meus pais, pensei que fosse a melhor pessoa para me informar.

Ela tirou seus óculos antiquados e amarelados, e limpou os olhos.

- Para isso nem preciso de papéis. - respondeu ela.

- Como assim? - perguntou minha irmã.

- Eu sei a história daquela casa. Lembro que minha mãe contava pra mim quando eu era mais nova. É uma história horrível.

Olhei para Yvonne e ela olhou de volta. Seja o que fosse a história daquela residência, iríamos descobrir sua verdade aterradora.

- Aquela casa teve um dono. Ronald Devile era o seu nome. Ele era um viúvo rico que morava com suas duas filhas. Lauren Devile, uma moça alta, esbelta e de cabelos longos e negros. Uma mulher a frente da sua época. Sua outra filha, Marian Devile. Não era tão diferente da irmã. Era um pouco mais baixa e tímida que ela. Mas isso não é nem a ponta do iceberg. Ronald fazia parte de uma seita satânica, chamada de "A sexta serpente". E o pior ainda está por vir. Ele usava suas duas filhas como isca para atrair belos e jovens rapazes virgens para seus sacrifícios imundos. Elas não gostavam daquelas atrocidades, mas eram obrigadas a participar daquele tormento. Até que um dia, suas filhas começaram a manifestar dons paranormais. Dons esses que eram invejados por Ronald, que achava que Satã havia concedido poderes a suas filhas pelo fato dele ser indigno de tal dádiva. Elas eram brilhantes. Conseguiam fazer coisas extraordinárias com seus poderes. Amavam a natureza, e ressuscitavam desde pequenos insetos até grandes animais. Seu pai as odiava pois achava que aquilo profanava o véu que dividia a vida e a morte. Então, seu pai resolveu dar um fim aquela "aberração". Em uma noite, quando suas filhas estavam dormindo, ele tentou matá-las com uma espingarda que o pertencia. Mas o poder de suas herdeiras despertou, talvez até mais rápido que elas. Então, com seus poderes de telecinese, fizeram seu pai estourar a própria cabeça com a arma. Depois do ocorrido, descartaram o corpo do pai e fugiram da cidade. É realmente uma história horrível.

- Mas, pra onde elas foram? Nunca foram pegas? - perguntou Yvonne.

- Isso eu não sei. Acharam apenas o corpo do Ronald enterrado no porão da casa. Sinto muito por não ter uma boa história para pôr no seu trabalho, Dário querido... - respondeu a doce senhora.

- Tudo bem, Sra Jessel. Isso é o bastante. Vamos, Yvonne! Obrigado pelas informações.

- Não há de quê, querido. Dê lembranças a sua mãe.

Saímos do cartório confusos, mas não mais do que quando entramos.

- Então, o homem que você vê...

- Não sei se é o Ronald. Mas se for, é melhor acabar com isso de uma vez! - respondi determinado, como se não falasse nesse tom há muito tempo.

Entramos no carro e Yvonne me deixou na escola. Aquela história me deixou horrorizado. Como eu pude crescer sob o mesmo teto em que aconteceu aquelas coisas horríveis? Bem, era melhor ignorar meus pensamentos e começar a prestar mais atenção na aula.

Cortes na AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora