02: Não quero te perder

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Ontem eu não dormi. Na verdade, são poucas as noites que eu pego no sono. Geralmente costumo me dedicar a terminar minhas listas de leitura feitas para o mês ou então pratico desenho.
No entanto, ontem não fiz nem um nem o outro. Minha mente está em Yudis e em quão distante da minha amiga eu tenho ficado nos últimos anos.

Nossa amizade mudou muito, embora eu tenha mudado muito mais do que ela quer admitir e com isso vem o medo que me esmaga o peito quando penso na probabilidade de perder a única pessoa com quem eu consigo interagir ao menos de uma forma razoável... a única com quem tenho intimidade.

Fato é que, desde que me tornei adolescente, tudo o que eu consigo fazer é tentar me esconder das pessoas. Evito muito contato com quem quer que seja e é muito difícil me ver dialogando futilidades por aí. Ir a escola é um martírio que eu passo dia após dia — isso quando eu não estou faltando por mentiras esfarrapadas. — Se bem que, a única que se apercebe de minhas faltas é a minha avó e a própria Yudis, as quais parecem formar uma parceria para me tirar de casa sempre que podem.

Eu estou acordada a mais de meia hora, tenho o péssimo hábito de acordar muito cedo pelas manhãs, sendo que não durmo quase nada durante a noite. O mesmo caso de hoje, que peguei no sono há duas horas atrás antes de sentir a claridade do céu atravessando as cortinas de algodão do meu quarto, como consequência me vi bufando e abrindo os olhos. 

Empurro meu edredom para o lado antes que eu deslize cama à abaixo e use minhas pantufas. Quando estou no meu banheiro evito olhar para o meu reflexo no espelho de moldura oval suspenso na parede acima da pia. Não preciso olhar para mim mesma consoante eu escovo os meus dentes para saber que estou em um estado lastimável. 

Da última vez que me encarei quando acabava de acordar, minha pele pálida contrastava com as olheiras escuras resultadas das horas que passava acordada ao invés de dormir. 

Os pijamas de diferentes estampas que eu sempre visto — e que, particularmente prefiro manter durante o dia inteiro — amarrotados contra minha pele.

Sem esquecer dos cabelos quase sempre desgrenhados em torno de um coque mal feito.

É essa a imagem que eu tenho de mim mesma desde há quatro dias atrás. Sim, eu estou em um desafio interno de evitar mirar minha imagem, porque isso é muito mais fácil para mim, a ver a garota que se esconde por detrás de uma máscara de frieza e insensibilidade durante maior parte dos dias.

Coisa a qual eu tento me convencer de que foi minha melhor — senão única — opção para conseguir resistir às adversidades malditas que a vida me apresenta dia após dia. Eu me convenço de que é melhor não deixar ninguém entrar ou atravessar as barreiras que me defendem das pessoas ao meu redor, a que tornar a ser machucada mais do que já fui algum dia.

Eu abro a torneira e espalho água pelo rosto, uma tentativa de remover o cansaço que entorpece meu corpo frígido.

A real é que, por mais que eu venha negando que não faço ideia de quando tudo começou a dar errado e me levou a essa mudança drástica, tenho conhecimento de cada acontecimento que eu vivi e gerou estas marcas que levo não só dentro de minha alma, tanto como a que se encontra registrada no meu quadril.

Suspiro.

Eu preciso de apertar os olhos e tragar uma quantidade considerável de ar para reprimir a ardência que me corre nas pálpebras. Minhas mãos estão apertando a borda da pia antes que eu me vire e saia do quarto muito rápido.

O corredor está vazio. Acho que por este andar ter o quarto de Ur — que raramente está em casa até mesmo nos finais de semana —, que fica de frente para o meu. O quarto ao lado dele que ninguém usa e o banheiro à direita do meu quarto.

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