Anne acordou naquele dia com um beijo da luz da manhã que invadia aquele quartinho em Green Gables, o mesmo quarto no qual ela tinha tido os mais doces e profundos sonhos, e hoje um dos mais íntimos deles havia se tornado realidade.
Queen's é logo ali.
Dirigindo-se à janela, conforme fazia todas as manhãs para admirar a natureza sob a luz dourada do sol-nascente, ela beijou suavemente uma das flores de sua "amiga" Rainha das Neves.
—Eu te vejo em breve —sussurrou com o coração apertado sabendo que sentiria muita saudade de seu lar. Aquele mesmo lar que havia amado e odiado tantas vezes, que havia chorado e que havia sonhado... que havia conhecido o verdadeiro significado de família.
Toc toc
—Pode entrar.
—Anne, bom dia! —disse Walter com entusiasmo, sorrindo, com a cabeça entre a porta semiaberta. —Tem uma coisa que eu preciso te mostrar.
Após Anne ter se vestido e feito sua higiene matinal, ela desceu as escadas devagar, tentando memorizar cada mínimo detalhe das paredes, dos quadros espalhados pela casa, das pequenas falhas do piso de linóleo e de como a luz do sol irradiava aquela casa com uma certa espiritualidade indecifrável. Green Gables exalava amor no próprio nome. Seria tão difícil ficar longe de tudo aquilo... Mas era necessário.
—Isto é pra você, Anne. —afirmou o menino, enquanto entregava nas mãos da mãe aquele livro que seria um divisor de águas na vida dela, quando ambos haviam se sentado no jardim, conforme Walter havia pedido.
Sem proferir palavras, apenas expressões faciais que já explicavam sua curiosidade e confusão, Anne abriu o livro e se deparou com o nome de sua mãe Bertha. Conforme ia virando as páginas, sentia que seu livro da vida —literalmente —havia sido aberto diante de si, lhe dizendo o quanto seu passado havia sido glorioso e quão promissor seria o seu futuro. Não era apenas flores, mas a sua história. Seus pais a amaram profundamente. Ela não havia sido abandonada.
Quando Anne desfocou do livro e levantou a cabeça para Walter, que estava sentando ao seu lado, ela, com os olhos marejados, perguntou somente com o olhar como ele havia conseguido aquilo. E ele entendeu.
—Royal Gardner me trouxe isso ontem à noite. É uma longa história, mas foi ele que conseguiu.
Precisava agradecê-lo em um momento oportuno —pensou.
Seguindo pelas páginas, Anne se emocionou diversas vezes, pois finalmente seu passado não era mais um mistério completo. Até o primeiro picnic da bebê Anne estava datado em uma das páginas, entre crisântemos, petúnias e gardênias.
Mas somente na última página uma lágrima realmente escapou de seus olhos.
—Ruiva. —falou entre um murmúrio e um suspiro.
Sua mãe Bertha possuía os cabelos tão ruivos quanto os de Anne, conforme ilustrado naquele desenho assinado por seu pai Walter.
Talvez aquilo não significasse muita coisa para a maioria das pessoas, afinal, era "só" um desenho e não uma fotografia de sua mãe. No entanto, saber que Anne tinha herdado as madeixas vermelhas de alguém lhe dera a sensação de conforto. Todos aqueles anos odiando a cor de seu cabelo e, consequentemente, construindo uma aversão à própria aparência, de repente se tornaram tão tolos e tão apagados. Anne não era medonha, nem horrorosa e tampouco estranha. Sua mãe era ruiva.
Eu me pareço com a minha mãe.
—Walter... e-eu...
—Agradeça ao Roy quando você tiver a oportunidade e ele te contará como conseguiu. —interrompeu, sorrindo de orelha a orelha.
—Obrigada. —a sonhadora e agora emocionada Anne proferiu enquanto o abraçava fortemente. —Não só por isso, mas por tudo.
Walter não precisou responder. Retribuindo o abraço, ele pôde dizer por nada sem usar sequer uma única palavra.
E Anne entendeu.
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Quando todas as malas estavam muito bem arrumadas e os cabelos de Anne muito bem penteados, ouviu-se a tão esperada frase na sala de Green Gables.
—Está na hora de ir, Anne. —enunciou Marilla, emocionada. Uma hora alguém teria que dizer aquela frase. Não há o que fazer, afinal, eles crescem. E seguem os próprios caminhos. Caminham com as próprias pernas. E alçam voo.
—Nossa pequena garotinha —sussurrou Matthew dando um beijo na cabeça da menina que já era praticamente uma mulher. —Tenho muito orgulho de você.
—Ah, olhe! É Gilbert chegando! —exclamou Walter, olhando pela janela.
Quando Anne abriu a porta, deparou-se não somente com Gilbert, mas também com sua fiel amiga Diana, que usava o vestido azul-royal mais lindo que já havia visto na vida. Que sonho realizado estudar com eles dois na sua amada Queen's!
—Pronta? —perguntou Gilbert, esticando o cotovelo para que Anne pudesse enlaçar seu braço no dele.
—Mais do que pronta.
Anne sorriu para Diana que caminhava ao seu lado em direção à carroça, enquanto Walter, Matthew e Marilla vinham logo atrás.
—Meu pai a adorava, Anne. Ele com certeza estaria muito feliz se soubesse que estamos juntos. Ele sempre disse que formaríamos um ótimo casal, sabia?
—E você concorda com ele? —interrogou, imitando a expressão que Gilbert fazia quando estava confuso, franzindo as sobrancelhas.
—Não só concordo como também apoio!
—Eu apoio também! —gritou Walter, se intrometendo na conversa e fazendo Diana gargalhar logo em seguida.
Quando chegaram na estação de trem, todos se despediram com beijos, abraços e muitas lágrimas. Bash e a família de Diana também estavam lá, chorando tanto quanto Marilla e Matthew.
Assim que o maquinista anunciou a última chamada para todos entrarem, Anne se desgrudou da família, e os seus olhos transbordavam da saudade que iria sentir e da felicidade de saber que novas aventuras estavam bem na sua frente para serem desbravadas.
À medida que aquele trem ia sumindo no horizonte, Walter ia se afastando da estação.
Agora só tenho uma última coisa a fazer.
Sabendo que seu destino não era muito longe dali, não caminhou muito rápido. Queria se despedir daquele "mundo" —ou seria realidade? — em que havia chegado acidentalmente, mas com certeza sentiria muitas saudades.
Sua hora de ir se aproximava, ele sabia disso, então afundou sua mão no bolso direito, sacando aquele colar de girassol que ganhara na Feira do Condado.
—Isto é pra você, Elizabeth. Guarde e não se esqueça nunca de mim, tudo bem? —disse enquanto encarava os olhos, portadores de um brilho admirável, da moça, depois que ela abriu a porta e o saudou.
—Nunca me esquecerei de você, Walter Cuthbert.
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Assim que chegou em casa, após almoçar na mesa da cozinha de Green Gables, que estava nitidamente mais vazia com a ida de Anne, Walter foi direto tomar um banho. Talvez se dormisse um pouco, acordaria de volta no futuro.
Sua missão está completamente cumprida dessa vez.
Mas não havia sido necessário, pois ao sair do banho, ainda com uma toalha enrolada da altura da cintura e os cabelos molhados caindo sobre a testa, Walter notou um imenso brilho vindo debaixo da mesa de seu quarto.
Era o broche de ametista de Marilla. O verdadeiro, e não aquele que ele havia comprado na cidade.
Aquele que Anne havia supostamente perdido.
Ao agachar-se para pegá-lo, levantou de pressa e bateu, novamente, com a cabeça na mesa de madeira recém-polida.
E tudo ficou escuro.
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Take me back - Leve-me de volta
FanfictionCLASSIFICAÇÃO: Livre Além de poeta, Walter Blythe é também um cientista. Em um belo dia, algo dá errado em seu laboratório. Acidentalmente, retorna ao passado, quando seus pais Anne e Gilbert nem namoravam ainda. Porém, interromper a história pode...