Capítulo 14 - Ruiva

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—E então, Anne? —perguntou Diana, tão ansiosa que era possível ver nos seus olhos arregalados o quanto ela esperava uma resposta positiva da amiga. —Você vai? Marilla deixou?

—Sim, Di! É óbvio que eu vou! —respondeu a ruiva quase tão animada quanto Diana.

—Oba! Não seria uma boa comemoração natalina sem você, Anne! Mas... só tem um probleminha...

—Qual?

—Meus pais chamaram Gilbert e John Blythe também.

A família Barry iria organizar uma grande festa na manhã de Natal como fazia sempre. Todos —ou quase todos— os moradores de Avonlea eram convidados. Diana já tinha avisado a alguns amigos, mas a sua maior expectativa estava na presença de sua grande amiga do peito Anne Shirley (e de Walter Cuthbert).

—Você não vai deixar de ir por causa disso, não é, Anne? —continuou Diana diante do silêncio de sua amiga.

—Claro que não, Di! Oras, eu não deixo de ir à escola por causa de Gilbert Blythe! Pra mim a presença dele é indiferente. Não me importo o suficiente com ele pra deixar de ir aos lugares só porque ele vai estar lá. Não se preocupe com isso, minha amiga, estaremos todos na sua festa!

—E Walter... ele vai? —acrescentou curiosa.

—Ah, acredito que sim. Confesso que ele não demonstrou muito interesse quando eu contei, acho que o Walter é bastante tímido às vezes, sabe, Diana. Mas não acho que Marilla vai permitir que ele fique em Green Gables sozinho.

E assim foi feito conforme Anne havia dito. A aura do Natal amanheceu quase que exalando um ar mágico. Os bosques estavam todos brancos, os lagos congelados e as ruas estavam vazias. O dia estava cinza, mas na visão da sonhadora órfã ruiva de Green Gables, o dia 25 de dezembro era por si só uma data muito linda e especial, de forma que nem um céu pálido poderia estragar.

Anne havia ganhado um lindo vestido de mangas bufantes de Matthew naquela manhã. Ele era feito de seda e chegava até a altura dos joelhos. Possuía uma tonalidade de azul celeste com botões prateados que caía muito bem com a cor do cabelo de Anne. Era o primeiro vestido de mangas bufantes da menina, que sonhara com aquele momento a vida inteira. Ela agradeceu ao seu pai de coração com lágrimas nos olhos. Era a coisa mais deslumbrante que já havia usado.

Ao chegar à Orchard Slope, Diana a recebeu com um abraço.

—Feliz Natal, Anne!

—Feliz Natal, Di!

—Ah, eu tenho algo pra você! —Diana correu até à estante da sala e agarrou uma sacola parda. —Minha tia Josephine trouxe para mim.

—Por que está me entregando seu presente, Diana? —interrogou enquanto abria a embalagem. E então entendeu. —Oh, Diana! É... é lindo, oh!

Anne recebera um colar com a metade de um coração. O pingente era prateado e brilhante, reluzia todo o esplendor natalino. Dentro do coração estava gravado a palavra spirits. No mesmo momento, Diana enfiou as mãos nos bolsos do vestido e agarrou o seu colar, encaixando-o no de Anne. Os dois juntos formavam a frase kindred spirits, que significa almas irmãs.

Ruby Gillis, Josie Pye e os Andrews já estavam lá quando os Cuthbert chegaram. Embora Anne tenha dito que Gilbert não fazia a menor diferença, ele foi a primeira pessoa que ela sentiu falta. Walter andava atrás da ruiva com as mãos nos bolsos. Usava uma camisa branca com botões mostarda e suspensório. Acenou com a cabeça e com um sorriso amarelo pra Diana quando entrou e ela retribuiu com olhar decepcionado. Estava esperando ansiosamente a chegada de Walter e ele a cumprimentara daquela forma, tão fria quanto a neve lá fora.

A senhora e o senhor Barry estavam no salão principal, recebendo todos que chegavam. Os últimos foram os Blythe. Gilbert estava usando uma roupa muito parecida com a de Walter: uma camisa branca e suspensório. Seus olhos cinza-esfumaçados pareciam ainda mais misteriosos naquele dia. Eles encaravam cada movimento de Anne com admiração.

—Oi, Anne! Você está... linda. —abriu um sorriso desconcertado. —Feliz Natal!

—Feliz Natal, Gilbert. —respondeu secamente.

—Sabe, Anne, eu gostaria de me desculpar por ter te chamado de "cenoura". Seu cabelo vermelho é muito bonito. Eu gosto dele.

Apesar de não ter problemas de vista e saber exatamente a cor de seu cabelo, ela encarava comentários direcionados à cor avermelhada das suas madeixas como um insulto. Como gostaria que fossem mais escuros.

Mas Anne nada respondeu. Assentiu e saiu de perto do menino, haja vista que Ruby estava próxima deles. Walter apenas observava e estudava toda a cena.

O almoço natalino foi extremamente agradável. Todos se serviram de peru, batatas assadas e, para a sobremesa, um delicioso ganache de chocolate. Tudo se seguiu tranquilamente e o ambiente estava transbordando de boas energias de fim de ano. Walter, Marilla e Matthew foram embora pouco depois da refeição, enquanto Anne foi a última dos convidos a deixar a residência dos Barry.

Contemplando o caminho de volta pra Green Gables, a menina avistou um velho senhor com uma mochila enorme e  surrada nas costas, com várias "bugigangas" penduradas. Ele a encarou de volta e se aproximou. O homem se apresentou e disse que precisava trabalhar mesmo no Natal, pois sua família não tinha o que comer. O coração de Anne logo se encheu de compaixão e ela se ofereceu a entregar-lhe suas cinco moedas que havia recebido de Marilla naquela manhã. No entanto, antes que pudesse largar as moedas nas mãos dele, avistou uma coisa que lhe chamou atenção.

—O que é isto? —apontou para um vidro com um conteúdo escuro.

—É uma coloração negra para cabelos.

—Oh, eu posso ficar com isso em troca dessa quantia? —perguntou enquanto estendia a mão pálida com várias moedas prateadas.

—Claro, minha criança.

Era um milagre natalino! Anne havia ganhado um vestido de mangas bufantes, um colar prateado de Diana e agora iria tingir o cabelo de um tom tão escuro que ninguém, nem mesmo o abusado do Gilbert Blythe, ousaria lhe chamar de ruiva. Ela subiu as escadas correndo e fez todo o procedimento que estava na embalagem da tinta. Quando desceu para jantar, porém, seu rosto não exibia mais aquela mesma alegria e empolgação que exalava minutos atrás, quando havia comprado o produto. Walter a olhava, completamente assustado.

O cabelo de Anne estava verde.

Take me back - Leve-me de volta Onde histórias criam vida. Descubra agora