Não era como se eu não gostasse de trabalhar na fazenda, pelo contrário, tinha criado um carinho muito grande por todos os animais que tínhamos ali e gostava do que fazia. Mas cinco anos tinham se passado, agora eu já tinha vinte e um e comecei a sentir vontade de voltar à sociedade, quem sabe arranjar um outro emprego. Mirella e Ulisses já tinham saído da comunidade há dois anos, estavam vivendo juntos na cidade e cada um tinha um emprego. O número de jovens na fazenda tinha diminuído também, agora éramos em torno de oito, eu até tinha ficado com o trailer só para mim. Eu era, aliás, a mais velha por lá, braço direito da Proença, portanto todo mundo me respeitava. Embora achasse isso legal, ao mesmo tempo me lembrava da verdade: todo mundo já tinha voado para longe, só eu continuava presa ali. Foi movida a esses pensamentos que um dia fui falar com a Proença e contei a ela que queria arranjar um emprego na cidade, algo que ela prontamente me apoiou. O difícil era saber onde eu ia trabalhar, afinal de contas não era qualquer lugar que contrataria uma garota cheia de tatuagens e piercings, mas se eu não tentasse nunca ia saber. Proença me ajudou a montar um currículo — que não tinha quase nada, mas isso é só um detalhe — e depois eu apliquei para algumas vagas online. Como eu nem sequer tinha terminado o Ensino Médio porque abandonei a escola, não tinha muitas alternativas, mas tentei qualquer coisa que não fosse lavar banheiro, nada contra quem faz e inclusive tenho muito respeito pela profissão, mas eu preferia limpar cocô de cavalo do que de pessoa, se é que me entendem.
No outro dia, Proença me avisou que eu tinha recebido dois e-mails para entrevistas de emprego em lojas do shopping da cidade e eu nem pude acreditar na minha sorte. Ela e as outras meninas da comunidade me ajudaram a vestir roupas legais para a entrevista e treinaram comigo para eu não falar nenhuma bobagem na hora que chegasse lá. Proença me deu uma carona até lá e a sensação era indescritível, lembrava do quão em paz eu fiquei quando Ulisses nos trouxe na Kombi até a fazenda pela primeira vez e agora eu sentia a mesma coisa, uma paz interior enorme por estar voltando ao mundo, por poder voltar. Eu não tinha mais medo.
Só que eu não passei naquelas entrevistas e nem nas mais de vinte que fiz nos próximos dois meses. Sempre me davam respostas vagas, as vezes nem isso, mas eu sabia que era por causa da minha aparência. Quando eu andava pelo shopping, algumas pessoas olhavam assustadas, outras me admiravam com pena, achavam que eu estava doente por manter meu cabelo raspado. Odiava ser julgada pela minha aparência, as pessoas nem esperavam me conhecer para fazer diversas suposições sobre mim. Mas eu não ia mudar, não tinha a menor vontade de me tornar alguém diferente só para agradar a sociedade.
Então continuei procurando por algum local que iria me aceitar, precisava existir um emprego para alguém como eu, não era possível que eu fosse ficar desse jeito para sempre. Um dia, enquanto olhava o site no computador da Proença, uma vaga em questão me chamou a atenção: Era para trabalhar cuidando dos animais de uma fazenda que ficava há uns vinte minutos de carro da nossa. Eu sabia fazer esse trabalho, tinha passado os últimos cinco anos cuidando dos cavalos da Proença, dos porcos, galinhas e vacas que já eram quase como se fossem da minha família, até nome eu dava a eles. Decidi então mandar meu currículo, eu não tinha nada a perder, o máximo que ia acontecer era receber mais um não. O que eu não esperava era receber uma ligação cinco minutos mais tarde, pedindo para que eu fosse o mais rápido possível até a tal fazenda para fazer a entrevista. Uau, eles deviam estar mesmo precisando de um funcionário para o cargo.
Proença me levou até lá e foi me contando o que ela sabia sobre os donos da fazenda durante o caminho. Era uma família de sul-coreanos muito rica, tinham vindo ao Brasil para serem gerentes de uma das sedes nacionais de uma grande empresa de eletrônicos. O senhor Choi, o gerente, trabalhava na cidade de São Paulo e tinha comprado a fazenda para que sua esposa e filhos vivessem com tranquilidade em uma cidade pequena como Cadente, vez ou outra ele vinha para cuidar da família. O casal tinha dois filhos, um garoto que Proença tinha ouvido falar que já estava na universidade e uma garota mais jovem, que devia ter por volta de uns doze anos. Me disse também que a fazenda era grande, mas foi só quando estacionamos em frente ao portão que eu tive ideia da magnitude daquele lugar. Era imenso, pelo menos o dobro do que era a fazenda onde eu morava. Fiquei pensando que eles deviam ter uma porção de animais ali e me animei com a probabilidade de trabalhar em tal lugar.
Proença disse que me esperaria no carro, então eu toquei a campainha no portão e entrei acompanhada de um segurança – sim, os ricos tinham até segurança. Tudo para dentro do portão era extremamente luxuoso, inclusive o carro importado no qual eu fui transportada até a casa principal. A construção era antiga, aquelas casas com pé direito enorme que são tão bonitas que parecem saídas de um filme de época. Em frente a ela haviam fontes, esculturas que pareciam caras e outras feitas de grama. Mas o que me interessou mesmo foram os animais que pastavam à distância, eu não dava a mínima para coisas luxuosas.
Fui conduzida até uma sala grande e gelada, onde o segurança me pediu para aguardar em um sofá confortável. Por mais que fosse verão, a casa era fria e calada, o total oposto da casa da Proença onde sempre havia alguém falando alto e fazia um calor dos infernos nessa época do ano. Enquanto eu aguardava, uma mulher com aqueles uniformes de empregadas que eu sempre via em filmes na televisão apareceu com uma bandeja, me oferecendo chá e petiscos. Não pensei duas vezes e peguei tudo, se tinha uma coisa que eu sabia por instinto que era boa, essa coisa era comida rico. Dito e feito, estufei a boca de salgadinhos enquanto bebia um chá de pêssego e aguardava a minha entrevista.
Quinze minutos mais tarde, um homem engravatado chamou pelo meu nome e pediu que eu o acompanhasse até uma sala. Sentei diante dele, de frente para uma enorme mesa de madeira onde havia uma porção de documentos espalhados e um computador moderno no canto. O homem tinha cara de rico, cheiro de rico, não tinha como ser diferente. Ele se apresentou como sendo o senhor Roberto Choi, vulgo o gerente da empresa milionária que a Proença me disse, e eu engoli em seco enquanto apertava a mão dele. Não esperava ser entrevistada pelo ricaço em pessoa, eu teria que me esforçar para impressioná-lo.
— Me desculpe... — ele deu uma olhadinha no meu currículo, que ele havia imprimido e agora estava em cima da mesa — Senhorita Luana — leu meu nome rapidamente — Confesso que quando li o seu currículo, não esperava que fosse...
Ele me olhou da forma como eu odiava, do mesmo jeito que todas as pessoas que não me contrataram porque eu não "combinava" com a vaga. Mas dessa vez era diferente, minha aparência não influenciava na hora de cuidar dos animais, né?
— Senhor Choi, com todo o respeito, acredito que o senhor tenha visto que eu tenho bastante experiência — falei — Só porque sou uma garota e tenho essa aparência, não significa que eu não seja boa no que faço, pois eu sou.
Vi o homem dar um sorrisinho com as minhas palavras e fiquei me perguntando se aquilo era bom ou ruim.
— Vou confessar que gosto de pessoas com atitude, tenho alguns funcionários como você na minha empresa — ele me contou — Só fui pego de surpresa, não esperava que para esse trabalho na minha casa eu fosse receber um candidato com tais características.
— Se me der uma chance, posso lhe mostrar que tenho tanto profissionalismo quanto tenho atitude — respondi.
O senhor Choi deu outra risadinha, por algum motivo parecia ter gostado do meu jeito, que muita gente considerava arrogante. Ele então falou que ia me dar uma chance, eu ficaria em um período de observação por uma semana, se fizesse o trabalho bem feito, me contrataria para a vaga. Eu nem pude acreditar quando ele disse isso, depois de ter levado tantos foras, alguém finalmente tinha me oferecido uma chance, e eu não a iria rejeitar de jeito nenhum.
O homem então me levou para os fundos da casa, para me mostrar onde eu iria trabalhar. Eles tinham um celeiro enorme, quatro cavalos e uma porção de outros animais. Costumavam ter dois funcionários para o trabalho, mas um deles havia caído e quebrado a bacia, e era no lugar dele que eu iria trabalhar. O outro funcionário se chamava Tobias, era um senhor de já uns sessenta anos que trabalhava por lá desde que a família se mudou há quinze anos. Tobias ficou me olhando de cima abaixo quando me apresentei e jurou que eu não aguentaria nem dois dias de trabalho por lá, e aquilo me deu ainda mais disposição para mostrar a ele que eu conseguiria.
Quando voltei para o carro, Proença ficou animada e me parabenizou por ter conseguido a vaga, ela sabia o quão competente eu era e tinha certeza de que eu passaria pelo período de observação. E eu sabia também, por mais que fosse ser difícil, aquele seria meu primeiro emprego, o primeiro passo para a minha liberdade financeira. Só o que eu não sabia naquele dia, era que muita coisa iria mudar na minha vida, especialmente no que dizia respeito ao meu coração.
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As quatro fases da Luana
RomanceAos dezesseis anos, Luana fugiu de Lourinhos, uma pequena cidade no Amazonas, para Cadente, no interior de São Paulo. Tendo um pai alcóolatra desaparecido e um namorado abusador, tudo o que Luana buscava era um refúgio na fazenda de Proença, uma mul...