TRINTA

1.5K 246 125
                                    

Não faz nem um minuto que me sentei no sofá florido de vovó e o gato se acomodou no meu colo, como se essa fosse a minha única utilidade. Na maior parte do tempo tenho a impressão de que me odeia, mas ele não negaria uma soneca embalada pelo calor humano, mesmo que inimigo.

            ― Vou ligar para a sua mãe falando que vai se atrasar para o jantar ― vovó diz, sentada na poltrona a minha frente. ― Jujuba não vai sair daí tão cedo.

            Ela aponta com o queixo na direção do gato. Sorrio e acaricio o topo da cabeça do felino, ele ronrona todo faceiro. 

            ― Pelo menos teremos como colocar o papo em dia ― ela leva a xícara de porcelana até os lábios, bebericando o chá de folhas de laranja. ― Você andou sumido.

            Ergo as sobrancelhas pensando nos acontecimentos dos últimos dias. A volta de Elay a cidade fez minha vida virar de cabeça para baixo. Ou talvez ela tenha voltado ao eixo, dependendo do ponto de vista.

            Vovó sabe que Elay está de volta, mas seus olhos curiosos me dizem que ela quer ouvir da minha boca. Dou um longo suspiro, que faz o corpo do gato subir e descer junto do meu abdômen.

            ― É verão, sabe como é.

            Ela cruza as pernas e me olha como se eu fosse a novela das oito.

            ― As coisas costumam esquentar ― ela ri da própria piada, eu apenas franzo a testa.

            Dou um gole no chá antes de criar coragem para dizer alguma coisa, como se o líquido pudesse ser um soro da verdade ou algo do tipo.

            ― Voltei a desenhar ― opto por começar pela confissão mais fácil.

            O sorriso largo que minha avó esbanja me contagia. Estou feliz por ter voltado com uma prática que me fazia tão bem. Não sei quem sou, mas sei que o desenho faz parte da minha essência.

            ― Ah, menino, isso é música para os meus ouvidos ― vovó pressiona as mãos contra o peito. ― As coisas devem estar bem mais claras agora, não?

            Mordo o lábio.

            ― Um pouco.

            Ela ergue as sobrancelhas preenchidas de lápis.

            ― O que te aflige? ― pergunta.

            Finjo estar muito ocupado acariciando Jujuba, que ronrona alto. 

            ― Ah, eu estou bem.

            Vovó dá uma risadinha.

            ― Não seja bobo.

            Olho para ela e franzo os lábios.

            ― Ok... Elay está de volta.

            Ela reclina o corpo para a frente, apertando os olhos atentamente.

            ― Algo mais retornou com ela?

            Sei que está se referindo a minha paixão de adolescência. Vovó foi boa em detectar o sentimento quando eu estava tão confuso. Por isso é tão difícil estar diante dela agora, temo que acabe notando algo parecido.

            ― Ela está muito diferente ― conto, pensando na noite passada. Elay não dormiu por lá como da outra vez, mas foi embora tarde, depois de um pouco de conversa e silêncio constrangedor. Quando decidiu partir, a decepção foi tão grande que quase pedi que ficasse. Mas, por sorte, um resquício de sanidade me impediu de cometer essa besteira.

Você Acredita em Humanos?Onde histórias criam vida. Descubra agora