QUATRO

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Os dias que se seguem são compostos pela rotina torturante do verão: Elay saltando da Queda da Mariposa com seus novos amigos e eu assistindo ao longe, sem ninguém mais insistindo que eu pule, embora ainda fazendo piadas sobre meu medo paralisante.

            Nessa tarde em especial, o céu está de tirar o fôlego. As cores se compõem em uma mistura indescritível – uma audácia da natureza diante do meu estado. Se o clima refletisse o meu humor, esse verão seria repleto de tempestades, com o céu nublado o tempo todo. 

            Dessa vez, eu trouxe meu bloco de desenhos para tentar me distrair da diversão alheia, estou tentando reproduzir o pôr-do-sol com o grafite, que não faz jus aos diversos tons de magenta pincelados no céu. É quase impossível distinguir o que é céu e o que é mar, na plenitude crepuscular, como corpo e alma.

            Lá embaixo, na areia coberta de guarda-sóis coloridos, os turistas aproveitam a Golden Hour para tirar fotos. Poucos de fato param para apreciar e registrar o momento com os próprios olhos, famintos pelos likes, como zumbis.

            Alguns dos desenhos que fiz, antes do céu se tornar deslumbrante, foi onde a praia estava sendo atacada por uma orla de zumbis trajando roupas de banho e outro ainda com zumbis saltando da Queda da Mariposa. É quase libertador.

            Apesar de odiar acompanhar Elay e os babacas da cidade, estou disposto a não abrir mão tão facilmente. Aposto que vovó Edite só disse aquelas coisas porque não conhece Samuel e seu grupinho e o quanto a companhia deles é nociva.

            ― Então você é artista?

            Tomo um susto quando Maia se materializa ao meu lado. Ela está sorrindo de um jeito carinhoso, que me faz sentir novamente como um bichinho de estimação. Ela é pouco mais de um ano mais velha, mas me olha como se eu fosse uma criança gorduchinha que não sabe pronunciar as palavras direito.

            ― Ah, isso não é nada ― aponto para o bloco de desenhos como se fosse algo insignificante, sentindo minhas bochechas arderem, porque é o impacto que Maia tem sobre mim.

            Ela não é uma total imbecil como os outros, mas não é do tipo que julga a atitude deles como eu. Maia é linda, como uma pintura renascentista, e sempre ganhou todos os concursos idiotas dos garotos na escola, de quem é a mais bonita do colégio. Infelizmente não posso dizer estar imune aos seus encantos.

            ― Posso ver? ― pede, se sentando na mesma rocha que estou acomodado desde que chegamos.

            Não quero que ela veja, mas não consigo lhe dizer não. Mostrar meus desenhos para desconhecidos é como ficar pelado. Quando lhe entrego o bloco, tenho certeza de que estou mais vermelho que meus cabelos.

            ― Nossa, são muito bons ― ela folheia, mas não questiona a estranheza de ser uma mistura de desenhos conceituais e descabíeis, como os zumbis por toda parte, e isso me deixa um pouco aliviado.

            ― Obrigado ― digo, evitando contato visual.

            Maia percebe, como sempre, e ri. Ela tem total consciência do efeito que causa sobre as pessoas e parece se divertir com isso.

            ― Desculpa pelas piadas, sobre você não ter saltado ― diz, colocando uma mexa do seu cabelo atrás da orelha. ― Dê uma chance a eles, sei que não parece, mas alguns deles são bem legais.

            Faço que sim com a cabeça, mesmo que não acredite. Maia é legal, mas não vejo a mesma coisa nos outros.

            Quando ela volta para dar mais saltos, tento engolir meu espírito ranzinza de um idoso de 90 anos e faço inúmeros desenhos no bloco, até o pôr-do-sol completar seu ciclo e a noite começar a dar as caras. Finalmente, eles param de dar saltos no mar e me junto a eles.

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