DOIS

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Das coisas que me faziam sentir como alguém concreto, a única que sobrou foi o desenho. O papel sabe de todos os meus segredos, até daqueles que parecem estar além do meu próprio alcance. Já faz dois dias que não saio do quarto para nada, criando calos nos dedos que apenas muito trabalho duro poderia produzir. Preciso entender a bagunça, me sustentar em uma resposta maior... O que aconteceu com Elay?

Mas, há também outro motivo. Falta uma semana para que eu e Elay façamos aniversário e, respeitando a tradição, estou confeccionando o presente dela. É a mesma coisa desde que aprendi a segurar numa caneta, todos os anos faço um desenho de Elay que ela cola no mural do seu quarto.

Dessa vez, estou tentando reproduzir o que captei do seu salto na Queda da Mariposa, quando tudo parou e eu tive certeza de que se tratava da minha melhor amiga e não de um alienígena maluco. Mas, tomado pelo tédio, acabei mesmo desenhando algumas versões onde ela tem a pele verde, antenas e um terceiro olho na testa.

Estou na centésima tentativa agora, onde cheguei o mais próximo do real. Minha melhor amiga pende no ar como se fosse um anjo, os cabelos bem maiores do que a realidade, circundando o céu, este que ganhou um tom ainda mais bonito também. Afinal, naquele momento o mundo todo ficou diferente e é nas minhas memórias que tenho me agarrado.

Batidas na portam cortam o momento de inspiração me fazendo ser jogado de volta para a realidade. Sei antes de qualquer confirmação que se trata da minha mãe.

― Thalles, está um calor dos infernos e você nesse quarto!

Essa é minha mãe, ela adora palavrões, mas nenhum de seus filhos podem reproduzi-los ou ela lava nossa boca com sabão.

― Eu já vou! ― grito de volta, sem a menor intenção de sair.

Meus pais devem se arrepender até a alma por terem me dado o outro quarto com suíte e não para Cat, minha irmã. Ainda aguardo pelo momento que serei enxotado e obrigado a trocar com ela, mesmo que seja quatro anos mais nova e ainda não ligue para espaço.

― Não vou cair nessa mais uma vez! É verão, a praia está bombando.

Sei que ela deve estar dando pulinhos de alegria do outro lado da porta, porque ela ama o verão. Tem um quiosque na beira da praia que vende horrores na época de temporada, seu terceiro grande amor, depois de papai e seus filhos: Cat e eu.

Mas eu não gosto do verão, já que a cidade fica repleta de invasores que quando partem deixam seus rastros imundos: lixos por toda a parte.

Além do mais, jovens da minha idade não tem a menor vergonha em andar por aí com trajes de banho, o que não é meu caso.

Então, preciso me livrar logo da minha mãe.

― Só preciso terminar alguns detalhes, prometo que saio para o jantar ― digo, o que não é bem mentira, a maior parte do desenho já está pronta e estou quase convencido de que essa é a versão que vou dar a Elay.

― Não pode deixar seus amigos esperando ― escuto, mas dessa vez a voz não pertence a minha mãe e sim a própria Elay, o que me faz ter um pequeno colapso.

Começo a guardar os papéis o mais rápido que posso, me atrapalhando no processo. Há muitos deles e por fim coloco de qualquer jeito numa gaveta da escrivaninha. Quando abro a porta, sou surpreendido por Elay, Glorinha e Bianca e sou tomado por uma sensação nostálgica que me faz abrir um sorriso, movimentando músculos faciais bastante parados nesses últimos dias.

Bianca e Glorinha são amigas do jardim de infância, também frutos de uma amizade longa. Mas, depois que Elay começou a andar com seus novos amigos, a frequência com que via elas diminuiu drasticamente. Bom, elas são mais amigas de Elay que de mim, mas fico feliz em vê-las.

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