VINTE

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            É a noite mais fria desde que cheguei, mas não o suficiente para que eu sinta frio. O arrepio que percorre pelos meus braços e o leve tremor no corpo se dá pela ansiedade que dá as caras como a companheira insistente que tem sido nesses últimos dias.

            Fico feliz por Samuel não ter vindo atrás de mim, assim depois de dobrar a primeira esquina correndo, eu paro para respirar, pressionando as mãos contra o peito e sentindo as batidas rápidas do meu coração.

            O céu está bastante estrelado e a lua com seu brilho imponente no céu, parece parte de um cenário de filme. Vivi um bom tempo cercada pela poluição, com esse espetáculo escondido, que essa realidade do interior agora me parece ficção.

            Sei que acabei de estragar toda a possibilidade de ter algo com Samuel, ele provavelmente deve estar me achando uma maluca, mas não sei o que aconteceu para que eu começasse a agir dessa forma. Estar de volta para o mundo que tentei me convencer tanto de que era apenas um sonho está mexendo comigo.

            Ando à deriva, seguindo reto por uma rua de cascalho que acaba desembocando na avenida beira-mar. O barulho do mar me atrai como um ímã, não consigo vê-lo, mas pelo som sei que está agitado. É uma melodia que acalma meu coração e me faz voltar a respirar da maneira certa.

            Tiro o par de tênis e caminho em direção a areia, que refresca meus pés. Há algumas pessoas por perto, sentadas em cadeiras de praia ou em esteiras, conversando e bebendo. De repente me sinto um pouco solitária, mas a sensação some quando deixo a maré atingir meus pés. Tenho que conter a vontade de me afastar, a água está gelada e me faz tremer, mas acabo me acostumando depois de um tempo.

            A sensação me faz sorrir e sentir vontade de gritar. Penso na minha mãe e como ela era supersticiosa. Um dos seus rituais era de que quando estivesse angustiada, um banho de mar na luz da lua purificaria a alma. Eu nunca acreditei muitos nas suas teorias, mas me vi jogando os tênis para a areia e avançando em direção as ondas, até estar com o peito imerso.

            Não sei quanto tempo permaneço no mar, mas fiquei até sentir que não havia mais com o que me preocupar. Quando volto para areia, estou me sentindo muito mais leve. Pego meus sapatos e começo a caminhar na direção do apartamento, deixando a maré alcançar meus pés.

            Volto a acreditar que, mesmo com o encontro desastroso, as coisas vão ficar bem. E é um equívoco, claro, porque a vida faz questão de fazer minha esperança murchar como um balão desgovernado. Escuto passos rápidos ecoando atrás de mim, se aproximando como uma bala. Mal tenho tempo de virar para ver de quem se trata e meu braço é enlaçado pelas mãos enormes do meu ex-amigo de infância, me obrigando a parar. O fantasma que não me deixa em paz.

            ― Qual o seu problema?! ― pergunto, me desvencilhando do toque e ignorando como o gesto me causa uma sensação desnorteante.

            ― Calma ― ele ergue os braços em rendição. É então que percebo as tatuagens circundando seu braço esquerdo. Não consigo distinguir os desenhos com a pouca luz advinda da iluminação pública, mas é o suficiente para que mais uma questão rodopie na minha mente: Thalles deixou mesmo de ser artista?

            Cruzo os braços e dou alguns passos para trás. Ele toma o ato como uma ordem para voltar a se movimentar. Então procura algo no bolso da calça e, para o sossego do meu coração, saca o meu celular e não uma pistola de lazer alienígena.

            ― Você esqueceu na bancada da pia do banheiro ― ele me entrega o aparelho.

            Me vejo numa situação encabulada, onde tenho que agradecer Thalles e não poder ofendê-lo.

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