QUATORZE

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Começo a achar que não foi uma boa ideia aceitar sair com Samuel assim que ele me manda a primeira mensagem, toda relutância dos meus quatorze anos retorna e fico achando que há algo de errado nisso. Na época eu não sabia, ou não queria perceber, mas eu me sentia mal por Thalles e por isso recuava sempre que Samuel fazia suas investidas.

            Agora, Thalles já não é mais o mesmo e, mesmo que ainda não goste de Samuel, aposto que não se importaria que ficássemos finalmente juntos.

            Só que a pulga atrás na orelha é impossível de ignorar e eu não consigo deixar de pensar em como meu ex-melhor-amigo me olhou naquela noite, como se eu fosse uma estranha. Sei que ele me reconheceu, mas todo o distanciamento nos tornou mesmo estranhos um para o outro.

            Fuço todas as redes sociais de Thalles, como se pudesse encontrar respostas. Ele tem o dobro de seguidores que eu, é muito conhecido e vive em festas. Namora Maia há três anos, começaram pouco tempo depois que eu fui embora e, apesar de todo mundo ser muito feliz no universo digital, ele parece de verdade satisfeito com sua vida.

            Não vi sequer um indício de que ele é um artista, não há nenhuma postagem de seus desenhos, nem mesmo antigas. Isso me faz pensar novamente nas teorias bobas que criávamos quando éramos crianças, de que os alienígenas conspiravam contra o Planeta Terra e coisas do tipo. Se for mesmo verdade, eu apostaria que o verdadeiro Thalles foi abduzido e que essa versão se trata de um alien.

            Depois do expediente de sábado na Rabisco & Disco, Bianca e Glorinha me convocam para uma exposição ao sol na praia, como nos velhos tempos. Elas alegam que estou pálida demais e que um bronze me cairia muito bem. Não falo nada, mas agradeço que elas façam esse convite, não tive coragem de ir até o mar sozinha desde que cheguei, com medo de que me atinja com sentimentos que tanto reprimi.

            Assim, devidamente trajadas e com uma cesta de comidas vamos até a praia. É bom estar com elas novamente e isso me traz mais uma vez uma leve onda de arrependimento por ter me distanciado.

            Estendidas na areia, elas me atualizam um pouco mais sobre as coisas que mudaram em suas vidas; eu mal falo, já que não tenho muito o que contar. Bianca tagarela sobre suas aventuras amorosas e Glorinha sobre seu relacionamento perfeito, tento não demonstrar a inveja e a vergonha por ter uma vida tão sem graça em vista da delas.

            ― Estou decepcionada, é sério ― Bianca diz depois de me questionar sobre minha vida amorosa inexistente, me encarando com seus óculos escuros enormes. ― Você tinha tanto potencial.

            Nós três rimos, porque é verdade, já fui uma garota descolada cheia de admiradores, agora sou só uma estrela apagada.

            ― Talvez se você tivesse continuado aqui as coisas seriam diferentes ― Glorinha diz. ― Talvez tivesse se tornado uma idiota como Thalles, sabe?

            Bianca finge estar vomitando e eu sinto vontade de verdade.

            ― Poderiam me atualizar um pouco sobre ele e parar de torcer o nariz ― falo, me sentando. Não quero que percebam pelo meu rosto que estou chateada.

            ― Desculpa, é difícil associar esse cara ao seu melhor amigo de infância ― Bianca diz se sentando também, ao passo que Glorinha se vê na obrigação de fazer o mesmo.

            ― Tudo bem ― dou de ombros, mas não está nada bem.

            ― Depois que começou a namorar Maia ele se distanciou de nós, passou a fingir que nem nos conhecia ― Glorinha diz. ― O que é estranho porque ela continua sendo legal como antigamente.

            ― Então a puberdade o deixou bonito ― Bianca diz isso com o rosto quase verde, como se fosse difícil assumir que Thalles está mesmo muito atraente. ― Mas a arrogância veio de brinde.

            ― Ele passou a andar com uma galera metida e meio que se tornou o centro das atenções, porque além de ser bonito ele também ficou muito bom no futebol.

            ― Ele odeia futebol! ― digo, indignada.

            ― Não odeia mais ― Bianca diz simplesmente.

            ― Não é estranho? ― questiono.

            As duas encolhem os ombros.

            ― Ele mudou muito, da água pro vinho, é como se... é como se tivesse sido abduzido, sei lá.

            Minha comparação faz com que elas caiam na risada, com vontade, de rolarem na areia de tanto rir. A praia não está tão cheia, mas todo mundo ao redor olha para elas com curiosidade.

            ― Ei! Estou só brincando ― tento me defender.

            ― A gente sabe ― Bianca diz, enxugando algumas lágrimas. ― É que esse assunto é engraçado pra qualquer morador da cidade.

            ― Por quê?!

            ― Porque é a cidade dos alienígenas ― Glorinha diz em tom misterioso, mas então cai novamente na risada.

            Tenho que esperar mais um novo ataque de risadas cessar para que alguém me explique o que está acontecendo. Bianca diz:

            ― Uma senhorinha meio biruta que mora afastada da cidade jura que alguns alienígenas andaram sobrevoando sua propriedade e ameaçando seus repolhos. Saiu em todos os jornais, sabe? Virou uma piada.

            Minha primeira reação é rir também, mas então começo a me desesperar conforme o assunto se assenta na minha cabeça, como se a minha teoria doida tivesse uma possibilidade de ser verdadeira.

            ― Você não está achando que isso é verdade, é? ― Glorinha pergunta vendo meu sorriso sumir, mas em vez de responder, meu olhar é atraído para um grupo de pessoas no topo da Queda da Mariposa, são quase como formiguinhas a distância, saltando para o mar sem hesitação. 

            Eu lembro da sensação, do vento batendo no meu rosto, do frio na barriga enquanto meu corpo despencava, do incômodo de atingir a água. Mas a sensação de liberdade e ousadia era o que mais me seduzia. Eu tinha medo de altura e enfrentá-lo foi como vencer na loteria. Saltar era meu desafio pessoal.

            ― Falando no diabo... ― Bianca diz, seguindo meu olhar, isso me faz perceber que a pessoa que despenca para o mar tem cabelos ruivos, é impossível não reconhecer.

            ― É ele? ― pergunto, já sabendo a resposta.

            Fico com medo, um sentimento que me dominou quando soube que minha mãe estava doente. Me sinto assim até vê-lo sair da água, intacto.

            Thalles morria de medo de altura, ainda mais que eu. Me lembro de ter submetido ele a beirada do penhasco uma vez e de como ele ficou pálido e tremendo. Agora só parece uma brincadeira para ele, assim como se portar como um idiota.

            ― Eu nunca tive coragem de saltar essa coisa ― Glorinha comenta, se remexendo incomodada.

            ― Ele perdeu o medo? ― pergunto, sem deixar de olhá-lo ao longe, caminhando pela areia com uma confiança que não tinha antes.

            Bianca e Glorinha trocam olhares significativos.

            ― As pessoas mudam ― Bianca diz, colocando a mão no meu ombro como consolo.

            Não me importo que ele tenha superado esse medo ou por ter se tornado um atleta, mas me importo que não tenha restado nada da nossa ligação, nem ao menos um pingo de consideração. As peças desse quebra-cabeça não parecem estar certas, porque eu sabia ser mútuo o sentimento que tínhamos um pelo outro e, apesar de todos esses anos sem comunicação, eu pensei nele e ainda torci para que estivesse bem. Sei que tenho culpa por não ter entrado em contato, mas ele também nem ao menos tentou...

            Respiro fundo e volto o olhar para minhas amigas.

              ― Me contem mais sobre essa aparição alienígena...

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