01 - Catarina

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Estava tão frio...

Mesmo as luvas de veludo surradas e o cachecol de crochê preto não eram suficientes para segurar o frio de Londres. Tantos carros cobertos pela neve e minha touca estava como eles, uma fina camada daquele gelo que deixava o tecido úmido e completamente branco, a ponto de me disfarçar sobre a neve. O dia havia sido longo, mas eu ainda não andava com tanta pressa, afinal eu já podia ver a minha casa a poucos metros. Uma ansiedade tomou conta de mim, apertando o meu peito e impedindo minha respiração, me sufocando como se ver a neve acumulada na calçada fosse um crime que eu teria que acobertar, mas claro que eu não dei importância. Eu só queria entrar por aquele portão de madeira escura e ligar o aquecedor. O frio realmente era o meu clima favorito, mesmo que ele estivesse congelando a ponta do meu nariz e deixasse uma sensação molhada em minhas meias, mesmo eu estando com sapatos de neve. Eu amava Londres, seus monumentos e atrações, museus e artes de grandes artistas que me faziam perder o fôlego com a complexidade de suas obras, mas eu ainda preferia a minha casa...

Eu nunca me lembrava da chave certa da minha porta. Aquele molho continha chaves que eu mesma nem sabia que portas elas abririam, nem sequer imaginava como haviam parado ali. Minhas luvas me atrapalhavam para escolher uma única chave, mas enfim eu havia acertado a chave certa. Eu empurrei a porta com força para abri-la, já que faziam meses que eu estava adiando o conserto das dobradiças.

Melog, meu gato, como sempre estava ali, deitado em um tapete diante da porta, como sempre fazia quando eu saía, sua comida intocada desde de manhã, quando eu havia saído para o trabalho. Ele estava estressado, triste, assim como eu. Estranhamente, compartilhávamos os mesmos sentimentos e sensações, eu só não sabia dizer se isso era algo fofo, esquisito ou só solitário, já que éramos só nós dois.

Eu tirei aquele casaco pesado, sentindo aquele choque térmico arrepiar o meu corpo, até que eu alcançasse o aquecedor ao lado da janela da sala, deixando um rastro de neve saindo dos meus sapatos pelo caminho. Melog me seguia com um olhar cansado, havia acabado de acordar, mas já iria dormir novamente em meu colo. A casa estava esquentando, ficando em uma temperatura agradável para mim, não muito quente, mas também não congelante. Lá estava eu no meu pequeno ritual diário: banho, macarrão instantâneo e meus pensamentos. Sentada à mesa, comendo aquela bomba de sódio com sabor de frango, acariciando Melog, que estava aninhado sobre as minhas pernas, e pensando nas coisas que eu deveria fazer. Arrumar a casa, tirar os pelos de Melog do sofá, arrumar o meu ateliê improvisado no pequeno quarto de hóspedes, forrar a cama, lavar meus pincéis, arrumar as contas, tentar uma receita nova...

Eu perdia o fôlego pensando em tudo isso, não estava bem o suficiente para isso, era muito para minha cabeça processar e executar; sem contar nas novas exposições do trabalho que eu deveria coordenar. Estava trabalhando no museu, um lugar bastante conhecido por abrigar mais de duas mil pinturas datadas de antes do século treze, o National Gallery. Tantas pessoas para interagir, tantas obras para direcionar e eu nem sequer era alguém importante lá, "apenas uma secretária", como minha mãe dizia. Eu queria ver ela passar um dia no meu emprego, mesmo eu recebendo pouco e tendo que acabar vendendo algumas pinturas ruins na internet para pagar todas as contas sem ficar com meu nome no vermelho.

Eu perdi a fome, outro detalhe desse ritual infinito. Havia ficado mais magra, os olhos fundos e minhas clavículas se destacando em meus ombros. "Você está muito magra, tem certeza que está comendo direito?" Scorpia me perguntava toda semana. Ela era uma mulher gentil e alegre, que sempre me ajudava a organizar a papelada do senhor Lucian, meu "chefe secundário", mesmo ela tendo uma área diferente, trabalhando na administração. Acho que ela era a única que eu não me importava de ter por perto, mesmo odiando pessoas muito animadas, eufóricas, que sorriem por motivos tolos; talvez fosse pelo fato de eu já não ver mais graça em muita coisa na vida... talvez fosse apenas inveja da felicidade alheia.

Until you rescue me - Catradora (reescrevendo)Onde histórias criam vida. Descubra agora