Kaz sentou-se à mesa e esticou sua perna ruim, alongando-a. Parecia que nessa semana ela passara a doer ainda mais. Talvez porque estivesse exigindo muito dela, já que atravessava a cidade inteira de Ketterdam por si mesmo para coletar as informações cruciais para a gangue. Isso era trabalho de Inej, e ela não estava mais com ele. É melhor assim, ele pensou, ela está feliz agora. Ele tirou as luvas, deixando-as dentro de uma das gavetas abertas.
A melhor escolha no momento seria escolher um novo espião para ele. Contudo, isso não foi possível: não havia ninguém melhor que Inej. Por mais que tentasse, todos eles eram preguiçosos, tolos ou tiravam ele completamente do sério. A Espectro nunca poderia ser substituída. Kaz, portanto, resolveu fazer ele mesmo o serviço nesse meio tempo.
Depois da visita de Jesper, Kaz não pôde parar de pensar em como sua vida poderia ser diferente se aquilo não houvesse ocorrido. Poderia aceitar o convite do amigo. Poderia ficar com Inej. Poderia não ter aquela estúpida perna manca. Poderia...
Ele desanuviou seus pensamentos, voltando à realidade. Não era hora de ficar sentimental. Isso não poderia ocorrer, senão todo o poderio conquistado seria abalado. Quem deixava as defesas caírem veria tudo que mais preza ruir. Voltou a organizar a papelada em sua mesa. Contratos... tudo uma farsa. Não existia ordem naquela cidade. Havia vantagem, quem conseguia passar a perna no outro antes.
Uma sombra surgiu e assomou-se pela fresta da porta, movendo-se cautelosamente. Toc toc, ouviu-se as batidas na porta. Brekker resmungou ao levantar, apoiando-se na mesa. Não tenho um minuto de sossego. Esses inúteis não conseguem fazer nada sem que eu interfira, pensou ele. Seu olhar fitou as pálidas mãos nuas. Ele hesitou, olhando da maçaneta para a gaveta na qual suas luvas estavam guardadas. Toc toc, o som reverberou novamente. Voltou em direção da mesa e pegou suas luvas, encaixando-as em seus dedos finos.
Ao abrir a porta bruscamente, deparou-se com os grandes olhos castanhos escuros tão familiares. Dessa vez, ele não conseguiu conter seu espanto.
"Inej", ele sussurrou.
A Espectro avançou rapidamente em sua direção, abrindo lentamente os braços. Sua expressão era radiante. Quando estava a um palmo de distância do outro, ela parou bruscamente e seu rosto se fechou, como uma nuvem que surge diante do sol.
"Desculpe", ela pronunciou, envergonhada.
"Não se desculpe."
Kaz afastou-se lentamente, passando a mão esquerda no cabelo, deixando-o bagunçado. Aproximou-se da cadeira na qual estava sentado há alguns minutos. Ele continuou a alongar a perna, evitando o olhar de Inej.
"Você não disse que viria a Ketterdam tão cedo", ele começou.
"Eu quis fazer uma surpresa! Errr... como vão as coisas?"
"Ótimas. Andamos tendo algumas novas desavenças com Geels, mas nada que eu não possa resolver."
Inej revirou os olhou rapidamente, virando-se para a janela. Ela observou a escura cidade na qual morou até seis meses atrás. Kaz imaginou se ela havia sentido saudade daquelas ruas escuras depois de tanto tempo navegando pelo imenso mar que os cercava.
"Kaz... Eu senti sua falta."
"Eu também senti."
Ela desviou seu olhar da enorme cidade que se estendia até além do horizonte e olhou para Kaz, que estava ao lado dela, observando-a cautelosamente. Provavelmente não esperava ouvir essas palavras vindo dele. Um sorriso doce brotou em seu rosto, o que fez o coração de Kaz palpitar.
"Essa cidade não mudou nada... nunca pensei que sentiria saudade dela. Ela me trouxe tanta tragédia, mas também me trouxe os melhores amigos que eu poderia ter...", ela desabafou, voltando um olhar sonhador para a paisagem.
Kaz desejava se aproximar mais, arrumar aquela mecha de cabelo que estava no rosto de Inej. Ele queria tocar na mão dela, que se encontrava apoiada contra o vidro. Quando tentou se aproximar mais, sentiu náusea. Se afastou imediatamente, olhando para outra direção.
"Como estão os outros?", ela indagou, parecendo não ter percebido aquela tentativa falha. "Andei mandando cartas a todos, mas imagino que você os esteja vendo, certo?"
"Estive muito ocupado." Kaz olhava para algum ponto no meio daquele mar de prédios sem fim.
Ela suspirou alto.
"Ah, Kaz..." ela olhou intensamente para ele, o que o fez olhar para ela. "Eles são os seus amigos. Fariam de tudo por você. É assim que você os trata?"
"Ninguém tem amigos nessa cidade. Muito menos eu. Isso é pedir para ser enganado e ter toda sua vida tomada de você." Assim como aconteceu com Jordie e eu. Inej a esse ponto parecia furiosa.
"E onde eu me encaixo nessa história?" ela vociferou. "Não estou muito surpresa, apesar de achar que você estaria mudado. Não passo de um investimento de qualquer forma."
Dessa vez, ele ficou quieto. Sua mandíbula estava cerrada fortemente e seu olhar era agitado. Chega. Ele se dirigiu em direção à mesa de trabalho, agarrando sua bengala com força. Em seguida, foi em direção à porta, pegando seu sobretudo preto pendurado no cabide ao lado.
"Você sabe que isso não é verdade", ele murmurou. Inej pareceu atordoada novamente. Ela não esperava por essa confissão também.
"Para onde você está indo?", ela demandou.
"Jesper me convidou para visitar ele e Wylan na mansão, quer ir também?", ele perguntou, tirando suas luvas devagar, como se com dúvida.
A garota estava mais perplexa que nunca. Kaz indo visitar alguém por espontânea vontade? Sem luvas? A verdade é que ele estava no seu limite. Tinha certeza que não era uma boa decisão. Mas ele sabia que eles eram seus amigos, que eles se importavam. No fundo, ele também sabia que não era justo fazer isso com eles depois de tudo o que passaram. Além disso, ele havia prometido à ela que o teria sem armadura. Ele tentaria vencer isso.
"Acho que eles não vão se importar se você levar uma convidada."
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A Sombra do Passado - Uma história de Six of Crows
AdventureMeses depois do final de Crooked Kingdom, os Dregs estão tomando rumos diferentes em suas vidas. Quando uma provável nova ameaça de Van Eck surge, eles se juntam novamente. O que eles não esperam é encontrar a chave para conhecerem uns aos outros co...