Ao longo dos dias gélidos e taciturnos, Jesper observou os meninos perderem a dedicação juvenil que possuíam quando chegaram. O atirador pôde perceber o momento em que a verdade atingiu Jordie: Ketterdam não era uma cidade para esperanças. Ketterdam era uma cidade para criminosos miseráveis e tolos que não sabiam onde se metiam. Santos, estou pensando exatamente como o Kaz, ele observou mentalmente.
Continuaram o plano por alguns dias, seguindo discretamente os irmãos que tentavam a sorte pelo mundo. Foi designado a Jesper o trabalho de registrar a rotina que tomavam, no entanto, logo descobriram que os garotos não haviam uma. Jordie procurava trabalho quando este aparecia. Kaz, muito pequeno, ficava no albergue esperando impaciente ou acompanhava o irmão nas jornadas infrutíferas.
Kaz deixou de acompanhá-lo constantemente, uma vez que suas perninhas não davam conta do ritmo frenético pelo qual Jordie se encaminhava pelas vielas escuras e alamedas lotadas. O mais velho sempre acabava acomodando-o sobre os ombros, o que fazia Kaz esticar as mãos como se para alcançar as nuvens rosadas que circulavam preguiçosamente pelo céu.
É claro que Jordie o fazia de boa vontade, mas após um tempo era possível ver o desconforto nos olhos que tentava disfarçar. Ele queria o irmão por perto, mas não conseguia sustentá-lo mais, se tornando cada vez mais fraco e faminto enquanto o dinheiro que trouxera de casa se esvaía.
Jesper e os outros se escondiam atrás de uma barraca vermelha que vendia diferentes tipos de frutas exuberantes. Essas certamente vinham de Novyi Zem, já que o solo Kerch era completamente infértil. A mente de Jesper não parava de pensar no que ele estaria fazendo agora se não tivesse vindo para aquela terra de ninguém. Estaria plantando aquelas frutas? Preste atenção, Jesper, ele se repreendeu, não podemos perdê-los de vista. Ele balançou a cabeça, desanuviando os pensamentos intrusos.
Wylan havia confessado a Jesper alguns meses antes o quão preocupado ele estava com a saúde de Jesper. O atirador se recusava a manipular os poderes devidamente. Ele havia sugerido encontrar os grishas de Ravka, que poderiam ajudá-lo. Ele próprio havia se oferecido para ajudá-lo. Mas a verdade é que Jesper tinha medo. Ele cresceu sabendo do quão perigoso era ser um grisha, e não conseguia se livrar das amarras que o prendiam a essa concepção.
Jesper se encontrava cada vez mais ansioso e impulsivo por não usar os poderes. Havia se tornado mais difícil evitar os jogos de azar. Em certos momentos seu coração retumbava como mil tambores impiedosos, a tontura vindo logo em seguida, deixando tudo negro e confuso. A pressão em seus pulmões o sufocava lentamente e seu suor frio escorria pelas costas. Wylan sempre o ajudava quando ele tinha crises, mas já não conseguia disfarçar seu temor pelo outro.
Desde que haviam ingressado nessa nova façanha, Jesper se sentia mais estável. Ele tinha seus momentos, é claro, mas o perigo constante o permitiu de certa forma respirar como não fazia há tempos. Ele sentia um alívio culpado por terem acabado no passado, o que quase o impedia de sentir as consequências de suprimir seus poderes Materialki.
O que o incomodava no momento era assistir o passado de Kaz e seu irmão. Em seu íntimo uma sensação de algo vai dar muito errado martelava cada vez mais forte. Cada vez que Jordie puxava carinhosamente as mãos descobertas do irmão era como uma agulhada no peito de Jesper. Cada expressão de Kaz embebida em amor e fascinação por Jordie era uma lembrança torturante de como Jesper olhava para sua mãe.
Jordie agora se dirigia pela feira bagunçada, desviando de mercadores desesperados por lucro. Kaz o seguia em seu encalço, apressado para não se perder.
"Venha, vamos chegar mais perto", Jesper chamou os outros. Eles o seguiram, escondendo-se perto de outra barraca.
Em meio à confusão de negociações e lonas de mil cores diferentes, havia um palco onde se fazia um espetáculo de mágica. Jesper viu nos olhos do menino mais novo a admiração enquanto a brilhante moeda de prata desaparecia entre as mãos do ilusionista. Seu pequeno punho puxou insistentemente a camiseta macia de Jordie, chamando-o para assistir. Jordie sussurrou algo em seu ouvido e seus ombros murcharam, voltando a seguir para seu destino.
Jesper não pôde deixar de perceber que o olhar de Kaz não se desviou da apresentação antes de se misturarem ao alvoroço de clientes.
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Os dois agora haviam se desvencilhado da célebre baderna que era aquela feira de Ketterdam. Jordie olhava para os lados, atento para não ser roubado.
"Temos que tomar mais cuidado para não sermos vistos", alertou Nina, prendendo os cabelos em um rabo de cavalo alto. "As ruas por aqui são mais vazias."
E assim fizeram. Tomaram uma distância segura de algumas ruas, agindo como se fossem um grupo de turistas confusos pela imensidão devastadora da cidade. Inej tirou o mapa das vestes de couro que usava, esticando-o para os outros, tentando entrar no papel. Jesper o pegou e girou ao contrário.
"Jesper! Me dê isso!", Inej protestou.
"Estamos no lugar errado!", ele atuou "Temos que ir para leste!"
Nina revirou os olhos. Estamos fazendo uma boa atuação, ele pensou com um sorriso torto se abrindo no rosto.
Eles viraram à esquerda, por onde os meninos haviam seguido. Wylan, que estava na frente, abriu os braços impedindo-os de continuar.
"O-O que foi?", Nina arquejou com o susto.
Eles haviam parado não muito longe de onde o grupo estava. Se encontravam em volta de um menino não muito mais velho que Kaz, que vendia pequenos cachorros mecânicos. Jesper o observou dando corda em um deles, que imediatamente deu passos desajeitados em pernas duras, as orelhas de lata sacudindo. Kaz exibiu um sorriso gigante com dentes faltando. Também não deixou de notar a mão de Jordie indo automaticamente para o bolso à procura da carteira, hesitando logo em seguida. Kaz girou a corda de todos os brinquedos, soltando uma risada alegre.
"De onde você é, garoto?", eles ouviram Jordie perguntar.
"De Lij, senhor." Jesper achou engraçado o menino chamá-lo de senhor, sendo ele não mais que uma criança também. "Vim para cá há muito tempo, senhor."
"Lij? Nós morávamos a duas cidades de distância!", Jordie exclamou, animado.
"Nós morávamos em uma grande fazenda cheia de vaquinhas e galinhas", Kaz revelou. "Mas papai morreu esmagado pelo arado"
"Kaz!", Jordie repreendeu, puxando-o de longe dos atrapalhados cachorros de lata.
"O meu também morreu. Tuberculose", o garoto de Lij distraidamente contou
"Vendi a fazenda e nos trouxe para cá", Jordie continuou, envolvendo Kaz protetivamente em seus braços. Kaz tentou se desvencilhar para brincar com a lataria, o que fez Jordie soltá-lo imediatamente com as sobrancelhas juntas. "Estou procurando emprego, mas nessa cidade infernal parece não ter nenhum."
O garoto tirou o chapéu de camurça preta da cabeça, desempoeirando-o com desinteresse. Seus cachos castanhos estavam amassados no topo.
"Conheço um homem com vagas abertas para mensageiros", ele disse, colocando o chapéu de volta no topo de sua cabeça. "É logo ali, no fim da rua!", ele apontou entusiasmado para uma pequena cafeteria.
O rosto de Jordie relaxou, os olhos formando pequenas rugas enquanto segurava um sorriso otimista.
"Voltem amanhã e ele irá atendê-los", o garoto adicionou.
"Obrigado! Muito obrigado!", Jordie estendeu a mão para o outro, apertando-a como um empreendedor próspero. Ele já não conseguia conter a energia vivaz que o percorria. Jesper foi atingido por uma forte onda de empatia, como se fosse ele recebendo aquela oportunidade.
Jordie se despediu do menino alegremente, pegando em seguida a mão do irmão e puxando-o para longe dos cachorros que circulavam em sua volta. O irmão emitiu um resmungo, mas ao ver a vivacidade do outro cedeu imediatamente, correndo para acompanhar as passadas largas e confiantes.
"Nossa sorte está mudando", eles ouviram Jordie afirmar após ele comprar um par de chocolates quentes na feira pela qual haviam passado antes, indo preguiçosamente em direção ao canal que cortava a Aduela em duas.
Jesper observou os dois sentando à beira de uma ponte, as águas límpidas e torrenciais do canal refletindo dois pequenos meninos que ainda não sabiam que seu tempo estavase esgotando.
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A Sombra do Passado - Uma história de Six of Crows
AdventureMeses depois do final de Crooked Kingdom, os Dregs estão tomando rumos diferentes em suas vidas. Quando uma provável nova ameaça de Van Eck surge, eles se juntam novamente. O que eles não esperam é encontrar a chave para conhecerem uns aos outros co...