POSFÁCIO- KAZ

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POSFÁCIO- KAZTudo estava bem. Kaz não se lembrava da última vez em que havia dito essas palavras, talvez nunca sequer houvesse. Elas soavam doces como um refresco, como uma âncora que se soltava do fundo de um mar profundo e anuviado. Era como respirar pela primeira vez.

Sentado à beira do canal, ele observava as águas frenéticas as quais deslizavam navios de carga, barcos de pescadores lotados de peixes que em algumas horas seriam servidos nos restaurante mais chique da cidade, estivadores enfurecidos com uns aos outros apontando agressivamente em direções que para eles faziam algum sentido. Era uma desordem. Ele amava aquilo.

Aquelas águas agora brilhavam com a primeira luz do dia, como se centenas de cristais fossem levados pela enxurrada. Ele se aproximou, observando o próprio reflexo na água. Kaz não se surpreendeu ao perceber que tinha muito de Jordie em suas feições: a pele pálida, os olhos escuros como café, a mandíbula acentuada. Isso já tinha sido motivo para um ódio esmagador subir ao seu peito, mais uma lembrança da qual nunca poderia se desfazer. Nesse momento, portanto, ele sentiu... aconchego.

Por muitos anos, Kaz procurou arduamente relacionar a imagem de seu irmão a uma fraqueza que o impediria de sobreviver naquele covil de lobos. Por isso, o colocara de lado tantas vezes como um excelente exemplo de tolo sonhador. Apesar de tantos esforços, Kaz não podia negar: a saudade o corroía por dentro. Corroía e corroía, sem parar. Ele nunca teve a chance de entrar em luto por seu irmão, por sua vida anterior, não podendo então se desvencilhar dessas amarras doloridas.

Ele possuía a mesma arrogância, a mesma ambição. Essas duas características os levaram por caminhos perigosos, porém completamente diferentes. Jordie, ainda o farei se orgulhar, ele pensou melancolicamente. Ele olhou para as luvas de couro, para as pequenas fendas que o possibilitavam controlar uma partida a seu favor. Tijolo por tijolo.

"Pensando na vida?", a voz suave e calma soou atrás de si, fazendo-o se levantar em um movimento brusco. Ele sentiu uma pontada na perna ruim, mas não exibiu desconforto ao olhar para a garota em sua frente, a Espectro. Ela sorriu para ele, e Kaz esqueceu de tudo o que estivera pensando.

"Pode-se dizer que sim", ele respondeu, com o rosto sereno.

"Amanhã eu partirei para os mares novamente", ela anunciou as sobrancelhas formando um vinco de inquietude. "Mas eu voltarei, eu juro que voltarei logo para visitá-lo"

"Inej, seja livre, volte quando quiser, quando puder, não se prenda a mim", ele afirmou, apoiando-se em sua bengala. "Siga seu coração, que eu sei que ele está sempre certo. Sempre esteve"

Inej olhava cautelosamente para ele. Kaz não sabia o que se passava em sua cabeça.

"Obrigada por tudo, Kaz. Acho que eu nunca pude dizer isso", ela finalmente falou, desviando o olhar para o canal que agora mantinha um trânsito confuso de vários tamanhos de barcos e caixas de madeira. "A-aquele foi..."

"O canal onde Jordie foi levado pela correnteza?", ele ainda sentiu uma pontada ao dizer isso. "Sim"

"Kaz..."

"Desde que vocês voltaram, eu sinto que... as coisas estão melhorando", ele contou, acompanhando o olhar da Espectro em direção a um barco enorme que chegava, parecendo tanto a barcaça de mortos que assombrava o passado de Kaz. "Sempre achei que se minha história fosse revelada, minha imagem corresponderia a fraqueza e ridicularidade. E para muitos seria. Então me agarrei tão firme à essa ideia que não conseguia ver que ao meu lado existiam pessoas que me entenderiam e me deixariam ainda mais forte"

Inej olhou para ele de soslaio, provavelmente espantada pela repentina sinceridade. Ele sentia o mesmo, mas por algum motivo não conseguia parar de falar.

"Não consigo tocá-la, por mais que eu quisesse, ou ser definitivamente alguém...bom e você sabe disso e me respeita. Estou tentando ultrapassar essas barreiras e ao mesmo tempo manter o meu controle sobre os negócios, mas nós sabemos que não vai ser fácil ou mesmo rápido. Então, Inej, não se prenda a mim, continue sua vida fazendo justiça, algo que nós dois sabemos que é o que esse mundo mais precisa no momento"

"Eu vou mandar cartas, é melhor você me responder", ela advertiu, evitando olhar para ele nos olhos. Seus olhos estavam, contra sua vontade, formando lágrimas.

Neste momento, seus mindinhos se tocaram, e isso foi melhor que qualquer abraço. 

A Sombra do Passado - Uma história de Six of CrowsOnde histórias criam vida. Descubra agora