Refúgio

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Gizelly Bicalho.

O que são lembranças para você? Para mim lembranças são como ondas do mar, vêm e vão com brisa da saudade que atinge nossos rostos e irritam nossos olhos os fazendo marejar. Marejar. Sinônimo de gotejar. Em nossa vida gotejam momentos bons e ruins guardados em um utensílio profundo que acolhe muitas outras coisas. O coração. Cuidadosas, as memorias nos levam um instante do passado: uma voz, um cheiro, um som, um momento marcado pela tristeza ou pela alegria.

Estamos cheios de recordações que nos determinam e constroem, são nossas raízes e traçam o que somos: seres que experimentam diversas experiências ao longo da caminhada, e que amadurecem a cada passo dado ou não.

Durante muito tempo precisei de um canto só para mim, um lugar para me refugiar e me encontrar em meio ao turbilhão de sentimentos, além de memórias que guardava. Há anos havia comprado um apartamento em frente à praia, e não havia falado nada para conhecidos. Somente quem sabia da existência era minha avó, e ela jamais se atreveu a dizer para alguém, pois era o meu lugar, era íntimo e nutria um propósito para mim jamais revelado para uma pessoa.

Quando o comprei fiz uma obra inicial, eu tirei simplesmente todas as paredes que separavam os cômodos, colocando pilastras grossas de sustentação, eu queria algo amplo e que me passasse à sensação de liberdade, fluidez e que me inspirasse. O único local que deixei reservado com paredes e porta foi o banheiro, mas o deixei extremamente espaçoso com tudo que se pudesse ter. Na decoração não haviam muitos móveis, optei por prateleiras para guardar meus livros e objetos que me recordavam algo.

Quando entrei no apartamento com Marcela, notei seus olhos brilhando por cada canto do espaço, ela apontou para a cama rente ao chão no meio do que seria a sala e mirou-me com a boca entreaberta sendo tomada por um sorriso. Minha noiva caminhou até a pequena biblioteca que possuía reparando nas lâmpadas pequenas, ou pisca-piscas para alguns, penduradas.

Uma sensação única a tomou, algo diferente, e difícil de descobrir. Parecia que tínhamos adentrado em um fantástico mundo, mas era só o nosso lugar.

Ela percorreu com os dedos pelos meus livros sentando-se em uma das poltronas separadas por uma mesa, com um vaso de flor em cima, acomodei-me lateralmente em seu colo passando minha mão por suas costas. Ao olhar para frente, tinha a visão ao fundo da cozinha com um pequeno bar. O local era todo branco, as cores vinham nos detalhes e ele ainda nutria características de um local planejado por uma menina.

O principal objetivo de nunca ter falado sobre o espaço para ninguém é que somente levaria a Marcela ali, tendo como adendo que seria no momento que já fosse minha, pois o montei com esse desejo, que fosse só minha. A partir do momento em que ela aceitou casar-se comigo, percebi que já era tempo de levá-la nele e mostrar que nunca a esqueci, e esperei sempre por ela, tendo planejado o universo para nós. Para recebê-la de volta, para nossa caminhada, para nossa vida a duas.

- Você gostou? – Questionei vendo sua expressão de encantamento. - O tenho a sete anos, comprei três anos depois foi embora e vinha aqui para lembrar de nós, pois sonhava com o momento em que moraria comigo.

- Então quer dizer que mesmo não estando juntas, a senhora montou nosso cantinho sozinha? - Questionou-me agarrando minha cintura.

- Sim, eu vinha para cá sempre que sentia sua falta e como você pode ver nunca rasguei nossas fotos. – Informei apontando para os portas retratos, todos os nossos registros, e encarei-a notando seus olhos acompanhados de lágrimas. - O que foi?

- Eu achei que durante todos esses anos você tinha me apagado da sua vida, mas... - Deixou-se emocionar fazendo-me abraçá-la percorrendo minha mão por suas costas. - Eu sempre tive um lugar nela.

Entrelinhas | GicelaOnde histórias criam vida. Descubra agora