O que pode tocar o coração I

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Até o ponto em que Ale iniciou apontamentos completamente descabidos, fora de hora e dispensáveis para a ocasião, Sabina sentiu-se relativamente bem durante o almoço. A alteração de seu humor deu-se de maneira tão brusca e repentina que, da necessidade de um medicamento para relaxar a tensão, passou o restante da tarde entre a sonolência e a solidão de seu quarto.
A morena não era mulher de ter compromissos que não fossem de negócios, sempre relacionados ao pai. Não tinha amigos, já que enxergava a dissimulação e o interesse em benefício próprio, em todas as pessoas que se aproximavam dela. Imaginava que cada tipo agia de acordo com as frustrações que lhes atormentava, com seus objetivos egoístas, ansiando por sugar do seu poder aquisitivo, sua inteligência, seu carisma, sua felicidade pessoal. Preferia afastar-se, isolar-se do mundo, a ter que suportar sanguessugas talhando-lhe a pouca sociabilidade que ainda restara em si.
Relacionamentos afetivos? Ah, esse âmbito é deveras complicado, talvez mais do que os outros. Depois de ter o coração partido com a separação indesejada e forçada do seu namoradinho da adolescência, Hidalgo nunca mais se apaixonou. Todos os rapazes que estiveram ao seu lado durante os anos que se seguiram não passavam de distrações. De alguns a mulher chegava a ter asco, outros apenas suportava. Não foram muitos namorados, e estes, eram sempre integrantes fúteis e vazios da alta sociedade, nenhum despertando sentimentos bons em Sabina, nenhum sendo capaz de devolver-lhe o brilho nos olhos, o sorriso largo e sincero, as borboletas no estômago que se evidenciam diante da paixão, do amor.
A chama apagada nunca mais foi reacesa. Por mais que a morena dissesse que não, que imaginasse que o fato de estar e ser só, não lhe atingia sentimentalmente, isso sempre a incomodou. A felicidade ao lado de alguém especial, o famoso final feliz, não era só propriedade dos livros que lia, ou dos seus filmes prediletos; ela ansiava e queria aquilo para si, mesmo sabendo que estava fadada à solidão.
Sabina fechou o livro que lia, mantendo-o em seu colo, quando ouviu batidas leves e espaçadas na porta do seu quarto. De cenho franzido, levantou-se devagar, ao passo que retirava os óculos de seu rosto, repousando-os sobre a capa de 1984, em cima do criado-mudo. Enquanto ajeitava o seu roupão, tentava adivinhar quem a incomodava mesmo sob ordens de não o fazerem.
- Oh, Taylor, alguém importante faleceu? - A mulher nada bem humorada, encarava a secretária que dava de ombros, já acostumada com a falta de traquejo e simpatia com que a filha do presidente tratava as pessoas por vezes.
- Desculpe-me. Sei que pediu para não lhe chamarem, mas é o seu pai. - A loira dizia calma, falava o mais devagar e suave possível, já antevendo a reação negativa de Hidalgo. Uma espécie de tentativa de amenização.
- Aconteceu algo com ele? - O semblante de Sabina transformou-se de enfurecido para preocupado em segundos.
- Não, em absoluto. Ele somente pediu para avisar que o jantar está servido e que a aguarda para fazer a refeição.
A vida atribulada com os excessos de compromissos - que remete à falta de tempo - e a negligência para com os que convivem entre si, são alguns dos responsáveis pelo abandono de hábitos simples por parte da família Hidalgo, tal como uma refeição em conjunto. Algo banal tornou-se árduo, e falando em verdades, nenhum dos três demonstrava claro interesse em resgatar a tradição. O Sr. Fernando tentou por vezes - instaurando o compromisso de sentarem-se à mesa pelo menos três dias da semana - retomar o que chamavam de "calor familiar". Não durou um mês o cumprimento do "acordo", cada um deixando de lado o que consideravam desnecessário dentro de casa, mas pregavam como sendo um princípio extremamente importante. Incoerência entre ações e verbalizações, em suma.
- Isso só pode ser coisa da minha mãe... - A morena pensava alto - Pois diga que não estou com fome.
- Any... - Taylor sentiu-se à vontade para chamá-la assim, pois sabia que ela estava nervosa, e dada essa condição, gostava de ser tratada apenas pelo seu primeiro nome - ... eu sinto muito, mas ele disse que não aceita desculpas. Pediu para que não demorasse também. E se me permite intrometer, ele não te dará sossego enquanto não descer.
- Ok, obrigada. – Hidalgo limitou-se a proferir somente essas duas palavras antes de fechar a porta. Recostada na madeira maciça entalhada, fechou os olhos prendendo uma grande quantidade de ar nos pulmões - Droga! Droga!
Queria não perder o controle de suas emoções, mas era impossível. Queria apenas viver um dia em que não se sentisse manipulada. Era uma mulher adulta, deveria ter assegurado o seu direito de fazer somente o que bem entendesse, no entanto, a realidade fugia ligeira em sentido contrário à de sua vontade.
Suspirou, praguejou, deu-se por vencida. Caminhou até o closet em busca de uma roupa adequada para a ocasião. "Preto, para o meu velório. O clima estará bem propício." Como se satirizasse os seus próprios pensamentos, a morena alcançou uma calça e uma camiseta preta. Os saltos baixos foram os primeiros à disposição, não se preocupando com as combinações ditadas pela moda. A única coisa que era indispensável para Sabina era o alinhamento dos fios de suas madeixas morenas e maquiagem, fosse básica, ressaltando os olhos castanhos e os lábios carnudos.
Não se demorou, conforme solicitado. O "toc, toc" altivo de seu caminhar pôde ser ouvido na direção da sala de jantar com pouco mais de quinze minutos.
- Já estava levantando-me para lhe chamar. - Ale dizia ao ajeitar o guardanapo em seu colo. A filha esforçou-se o máximo que pôde para não revirar os olhos, denunciando a sua insatisfação.
- Sinto uma fome absurda. - O Sr. Fernando fez sinal para o mordomo que se aproximou de imediato - Pode servir, por favor. - O homem voltou a atenção para a mulher que se sentou à sua direita, após beijar o alto de sua cabeça - Como está, minha menina?
"Minha menina"... Ele sempre tratava a filha dessa maneira. A relação entre os dois poderia ser considerada amena, amorosa. Fernando sempre fez de tudo para agradar, para proteger Sabina. A retribuição vinha em sinal de respeito, em carinho, em afetividade. O que sempre atrapalhou era os disparates da matriarca da família e a conivência por vezes de seu esposo. A primeira-dama não era uma pessoa ruim, era uma pessoa com alguns conceitos arcaicos e personalidade forte, tal como a filha. Talvez isso fosse o que as fizessem bater de frente, se estranhar tantas vezes. Não era falta de amor, era falta de respeito uma com a outra.
- Eu estou bem, papai. Sem fome, mas bem. – Hidalgo sorriu ternamente para o homem, torcendo o nariz em seguida quando o prato de Tartar de Salmão foi colocado à sua frente.
- Nem sempre comemos quando estamos com fome, Maria. É pela manutenção do bom estado de sua saúde. - A mais velha mastigava lentamente - Anda muito displicente nesse quesito, não acha?
- Não, não acho, mamãe. Cuido muito bem do meu corpo.
Era sempre assim. Discutiam, agrediam-se verbalmente e enquanto a filha guardava rancor, a mãe agia naturalmente, como se nada tivesse acontecido. Dissimulação? Fato. Irritava? Em proporções imensuráveis, mas era uma conduta enraizada, sem chances de mudança.
- Que você cuida bem do seu corpo não há duvidas, já que vive solicitando o personal trainner. A questão é: adianta, se não repor devidamente as energias que gasta nos exercícios?
"Senhor, daí-me paciência!". Na mente da morena só pairava esse pensamento.
- Não sou mais criança, mamãe. Fique tranquila que está tudo sob controle comigo.
Apesar do tom comedido de Sabina, Fernando, por conhecê-la melhor do que ninguém, percebeu a chateação no seu timbre de voz. Resolveu, portanto, desanuviar uma possível tensão que estava prestes a se instalar ali.
- Estão querendo que eu participe de um talk show... - Comentou despretensiosamente.
- Do Lawrence? - Ale indagou.

A Filha do Presidente| Joalina Onde histórias criam vida. Descubra agora