Prólogo

3.7K 343 147
                                    

Aquilo foi o mais perto do inferno que eu já estive. Não sentia meu corpo sustentando minha cabeça e era como se eu flutuasse em meio ao caos e ao desespero das almas que já sabiam que estavam condenadas. A correria, os gritos e o cheiro que a morte exalava chegava até minhas narinas e parecia se impregnar nas minhas entranhas como um odor que eu jamais esqueceria. Podia sentir o chão tremer a medida que os passos se aproximavam e, de repente, não havia mais ninguém ali além de mim. Em meio aos escombros o rosto diabólico do titã surgiu, os olhos arregalados para mim, as mãos esticadas em minha direção sacudindo debilmente.

Gritei com toda a força que meus pulmões me permitiram, mas nenhum som saía de meus lábios. Senti os dedos grossos se enroscando em meu corpo e então fui levantada pelo titã, finalmente reagindo e me debatendo enquanto sua boca se abria ainda mais para me devorar. Fechei meus olhos sentindo as lágrimas grossas e mornas descendo pelo meu rosto gélido. Não havia mais saída, mas meu corpo insistia em lutar e chamar por ajuda.

— Isabella, me ajude!

Mas já era tarde. O calor e a umidade me envolviam e senti os dentes se fechando ao redor da minha cintura. Uma dor lancinante percorreu meu corpo e gritei, sendo acordada por Sasha logo em seguida.

— Stella! — Ela me sacode pelos ombros. — Acorda, vamos!

Sento na cama em um pulo, assustada. Minha respiração está irregular e meu coração bate desesperado em minhas entranhas. Coloco a mão sobre o peito e encaro a garota assustada na minha frente. O cabelo castanho está bagunçado e ela está de pijama, com o rosto ainda um pouco amassado. Droga, devo tê-la acordado com meus pesadelos outra vez, penso comigo mesma. Abro a boca para pedir desculpas mas ela ergue a mão, em um sinal para que eu não continue.

— Está tudo bem. — Ela diz, se sentando na beirada da cama e colocando uma de suas mãos sobre a minha com sutileza. — Eu também tenho sonhos ruins. Acho que todo mundo tem.

— Estão ficando mais frequentes. — Passo as mãos pelo rosto, ainda atordoada. — Odeio essa sensação.

— Tente não pensar muito nisso. São só pesadelos, você está aqui. — Ela sorri fraco e se levanta. — Tente dormir um pouco, daqui poucas horas temos que levantar. E descanse.

— Obrigada, Sasha.

Ela não diz nada e caminha até a sua cama, se recolhendo em meio aos lençóis. Desde que cheguei ao pelotão agradeço por ter ficado no mesmo dormitório que ela. Sasha é gentil e bastante divertida na maior parte do tempo, além de ser uma ótima pessoa. Solto um suspiro longo e me deito novamente, tentando afastar as lembranças que o pesadelo havia me trago. Sem perceber, caí em meu sono agitado outra vez.

A manhã chegou muito mais rápido do que eu gostaria e com ela, os treinos. Eram cada vez piores e nos exigiam cada vez mais. Entretanto eu tinha feito uma promessa e tudo depende da minha entrada na Polícia Militar, o que exige de mim um desempenho excepcional, quase acima do que eu acredito que posso oferecer. Por isso eu estou aqui, correndo debaixo do sol, sentindo o suor pingar sobre meu rosto. Preciso reencontrar a minha família ou ao menos o que restou dela.

Aquele dia estava bonito, com o céu limpo e as ruas cheias. Meus pais estavam viajando, sentia falta deles em casa mas sabia que seu trabalho como médicos exigia muito deles. Isabella era como uma tia para mim, havia crescido junto com a minha mãe e ajudou a me criar. Não havia nada no mundo que pudesse lhe tirar o sorriso bem humorado do rosto fino, emoldurado por cachos avermelhados. Ela era excepcional e naquele dia eu insisti para que fôssemos juntas até o mercado.

Ela teria sobrevivido se eu tivesse ido sozinha?

Tudo o que me lembro é da breve silhueta que se esticava por cima da muralha para nos espionar, como uma criança observando sua casa de bonecas. Nunca havia visto um titã na minha vida inteira, tampouco um que fosse maior do que as muralhas que garantiam nossa segurança. Não demorou muito até que escombros voassem por toda parte e as pessoas entrassem em desespero. A lembrança de um grande pedaço do que antes era o portão de Shiganshina caindo sobre Isabella, prendendo suas pernas agora esmagadas contra o chão também se fazia viva em minhas memórias todos os dias.

Me lembro de seu corpo caído sobre a praça entre a sujeira que as pessoas deixaram para trás. A mulher extrovertida e radiante que eu tanto adorava agora parecia apenas mais um pedaço dos escombros e poderia passar despercebida por todos sem problemas. Eu estava ajoelhada ao seu lado, chorando e pedindo-lhe para que não me deixasse sozinha. Ela segurou uma das minhas mãos e colocou sobre a palma o anel antigo que sempre usou, era uma das coisas mais bonitas que já havia visto em toda a minha vida.

— Quero que fique com ele. — Ela apertou o objeto delicado em minha mão e o segurei com força. — Enquanto o tiver, não vai estar sozinha, minha estrelinha.

Isabella usou suas últimas forças para esboçar um sorriso e por mais triste que ele fosse, foi a única coisa que me deu coragem naquele momento para tentar sair viva dali. Estou tão perdida em lembranças e pensamentos que não escuto o comando para parar de correr. Apenas percebo que deveria parar quando acerto o rosto em algo.

Na verdade, em alguém.

Perco o equilíbrio e caio sentada, arrancando algumas risadas de outros cadetes. Os encaro irritada e sacudo a poeira das mãos, me preparando para levantar outra vez. É quando uma sombra cresce sobre mim e ergo a cabeça para encarar o dono dela.

— Desculpe, eu não vi que você estava atrás de mim. — Ele ergue a mão e a seguro, aceitando sua ajuda de bom grado.

— Está... — Faço uma pausa para o encarar. — Tudo bem.

O garoto dá um breve sorriso tímido e acena com a cabeça, pegando minha espingarda do chão e a entregando para mim. A pego de suas mãos e por um breve instante seus dedos tocam os meus. Há um contato visual quase que instantâneo e sinto meu rosto queimar quando os olhos do loiro caem sobre os meus. Eu sei quem ele é, Reiner Braun. Sei que não tem muitos amigos e agora sei que ele até que é gentil. Nunca havíamos nos falado antes e nesse momento me pergunto o motivo.

Ele ergue novamente o canto da boca no que deve ser uma breve despedida e se vira para ir embora junto com todos os outros que deixam o campo de treinamento. Por alguns instantes o observo caminhar, ele tem os ombros largos e o cabelo loiro ganha uma tonalidade mais clara sobre o sol.

E aquele uniforme lhe cai tão bem...

Mas que merda, Stella!

Balanço a cabeça e sigo em direção aos alojamentos, tenho coisas maiores para me preocupar. A formatura será daqui a poucos dias e preciso dar o meu melhor. Afinal, tudo depende de mim.

The Fallen Warrior | Reiner Braun (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora