(Trecho de uma carta a Gilbert.)
Estou em minha torre e Rebecca Dew está cantarolando Could I climb? na cozinha, o que me faz lembrar que a esposa do ministro me convidou para participar do coral! É óbvio que isso foi ideia dos Pringle. Talvez eu possa nos domingos em que não estiver em Green Gables. Os Pringle estenderam a mão direita em sinal de comunhão, ainda que com uma vingança oculta na outra... e eu prontamente a aceitei. Que clã!
Já fui a três festas deles. Não vejo nenhuma malícia nisto, mas acho que as garotas da família estão imitando meu estilo de penteado. Oras, "imitação é a forma mais sincera de elogio". E, Gilbert, estou realmente começando a gostar deles... como sempre soube que iria, caso me dessem uma chance. Começo a suspeitar que, mais cedo ou mais tarde, vou descobrir que gosto da Jen. Ela é encantadora quando quer ser e está muito evidente que o deseja ser.
Na noite passada, fui até a cova do leão... em outras palavras, tomei coragem e subi os degraus da varanda de Evergreens, com suas quatro urnas de ferro brancas em cada canto e toquei a campainha. Quando a senhorita Monkman me atendeu, perguntei se poderia levar a pequena Elizabeth para dar uma volta. Eu esperava uma recusa, mas depois que a Ajudante entrou e conversou com a senhora Campbell, ela voltou e disse com seriedade que sim, mas, por obséquio, que não a trouxesse muito tarde. Pergunto-me se a senhora Campbell também recebeu ordens da senhorita Sarah.
Elizabeth desceu a escadaria escura dançando, parecendo uma fadinha com seu casaco vermelho e o gorrinho verde, quase muda de tanta alegria. Ela sussurrou assim que partimos: "Estou tão elétrica e empolgada, senhorita Shirley. Sou a Betty... sou sempre a Betty quando me sinto assim".
Caminhamos pela Estrada que Leva ao Fim do Mundo até onde nos atrevemos e então voltamos. Nessa tarde, o porto, sob um entardecer carmesim, parecia repleto de insinuações de "terras mágicas longínquas" e misteriosas ilhas em mares desconhecidos. Fiquei emocionada, assim como a pequenina que segurava a minha mão. Elizabeth queria saber: "Se corrermos com toda a velocidade, senhorita Shirley, conseguimos chegar ao ocaso?". Recordei-me de Paul e de suas fantasias sobre a "Terra do Ocaso". Disse à Elizabeth que teríamos que esperar até o Amanhã para fazer isso. E pedi que ela que olhasse aquela ilha dourada de nuvens sobre a entrada do porto, para fazer de conta que aquela é a sua ilha da felicidade.
A sonhadora Elizabeth disse: "Existe uma ilha em algum lugar. Seu nome é Flying Cloud. Não é um nome adorável... Um nome digno do Amanhã? Posso vê-la através das janelas do sótão. Ela pertence a um cavalheiro de Boston que tem uma casa de veraneio lá. Mas eu finjo que é minha".
Quando voltamos, inclinei-me e dei um beijo na bochecha de Elizabeth antes de a menina entrar. Jamais esquecerei os olhos dela, Gilbert, pois aquela criança é faminta por amor.
Esta noite, quando veio buscar o leite, percebi que estivera chorando, ela soluçou: "Elas... obrigaram-me a lavar o seu beijo, senhorita Shirley. Eu não queria lavar meu rosto nunca mais. Jurei que não faria isso. Eu queria guardar seu beijo, sabe. Consegui ir para a escola nessa manhã com ele, mas de tarde a Ajudante me pegou e esfregou meu rosto com força".
Eu mantive uma expressão séria e disse a ela: "Você não conseguiria passar a vida sem lavar o rosto ocasionalmente, meu anjo. Mas não se preocupe, eu te darei um beijo todas as noites que vier buscar o leite, de forma que não terá importância se você o lavar na manhã seguinte". Ela disse-me que eu sou a única pessoa no mundo que a ama. Quando conversamos, sente o perfume de violetas.
Já ouviu falar de um elogio melhor que esse? Porém, não pude relevar a primeira frase e disse que a avó de Elizabeth a amava, e ela me respondeu que a avó a odeia. Então eu disse com firmeza: "Você está sendo um pouquinho tola, querida. Sua avó e a senhorita Monkman são pessoas idosas e idosos se irritam e se preocupam com facilidade. É claro que você as irrita às vezes. Na época em que elas eram jovens, as crianças eram criadas mais rigorosamente do que hoje. Elas são apegadas aos velhos costumes".
Senti que não estava convencendo Elizabeth, contudo. Afinal, elas não a amam e a garota sabe disso. Ela olhou para trás com cuidado para ver se a porta da casa estava fechada. Então, disse deliberadamente: "A vovó e a Ajudante são só duas tiranas e eu vou fugir para sempre quando o Amanhã chegar".
Acho que ela esperava que eu ficasse escandalizada... Suspeito que Elizabeth disse isso só para causar uma comoção. Eu apenas ri e a beijei. Espero que Martha Monkman tenha visto da janela da cozinha.
Posso ver Summerside da janela esquerda em minha torre, um amistoso amontoado de telhados brancos... Amistoso, pois, finalmente, os Pringle decidiram ser meus amigos. Aqui e ali, é possível ver uma luz nas janelas. Aqui e ali, há um espectro de fumaça cinza. Estrelas pesadas e baixas cobrem a cidade. É uma "cidade que sonha". Não é uma frase linda? Você se lembra... "Por entre cidades que sonhavam , Galahad passou".
Estou tão feliz, Gilbert. Não terei que voltar derrotada e desacreditada para Green Gables no Natal. A vida é boa... Muito boa!
Assim como o bolo da senhorita Sarah. Rebecca Dew o preparou e o deixou "secar" de acordo com as instruções, o que significa simplesmente que ela o envolveu em várias folhas de papel pardo e vários panos e assim o deixou por três dias. Eu o recomendo.
(O mais adequado é "eu o recomendo" ou "eu recomendo-o"? Apesar de ser bacharela em Letras e Belas Artes, nunca tenho certeza. Imagine se os Pringle tivessem descoberto isso antes que eu tivesse encontrado o diário de Andy!)
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Anne de Windy Poplars
AcakApós os anos na vida de universitária, Anne agora é diretora da escola de Ensino Médio de Summerside. Com a chegada na nova cidade e o recente cargo conquistado surgem alguns desafios, como a influente família Pringle, que não a quer à frente da esc...