Cena III

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FAUSTO e WAGNER, passeando

WAGNER

Mestre! mestre! Que arroubo hão-de causar-lhe
estas aclamações! Feliz quem saca
do talento e saber tão belos frutos.
Correm todos a vê-lo; os pais aos filhos
o apontam; é o oráculo das turbas.
Emudece a rabeca; a dança estaca;
formam alas ao sábio; as carapuças
voam pelo ar; e quase lhe ajoelham,
nem que fora o viático.

FAUSTO

Subamos
um pouco mais a encosta, e poisaremos
além na pedra.

(Sobem e sentam-se na pedra)

Quanta vez, meu Wagner,
não vim eu assentar-me aqui, sozinho,
co'a mente desvairada, consumido
do orar e de jejuns, rico de esp'ranças,
firme na fé! Que choros e suspiros,
que estorcer destas mãos, a ver se obtinha
do poder sobre-humano o fim da peste!
Estas aclamações soam-me a escárnio.
Se bem me leras no íntimo, verias
que nem filho nem pai merecem glórias.
Meu pai era um sujeito obscuro, honrado,
crendeirão, todo entregue a vãs teorias
sobre o teor do enigma Natureza.
Logrou ter seus prosélitos. Fechavam-se
numa cozinha negra, onde tentavam
toda a casta de récipes co'a mira
na fusão dos contrários: Leão ruivo,
(peralvilho montês) ia a consórcio
co'a tenra Flor de lis em banho morno;
passados logo a fogo mais intenso,
levantavam fervura ambos os noivos,
cada qual em sua câmara, e se uniam,
feitos os dois um só; bastava aquilo
para surdir num íris de mil cores
dentro no copo a juvenil princesa.
'Stava pronto o remédio; era tomá-lo,
o enfermo ia puxando, e ninguém punha
nem suspeição de culpa ao mata-sano.
(Morre quem tem seus dias acabados!)
Aqui verás com que infernais mistelas,
socolor de atacar a epidemia,
fomos por todas estas vizinhanças
muito mais peste do que a própria peste.
A quantos mil não propinei eu mesmo
a bebida funesta! e vendo-os ir-se,
ouvia ao mesmo tempo encomiados
por coisa grande os brutos assassinos!

WAGNER

Que aflição por tão pouco! A probidade
que mais tem que exigir, quando se exerce
honrada e pontualmente o que aprendemos?
Enquanto foi rapaz, novel no ofício,
ia-se com seu pai, que era o seu mestre,
e exemplar que na cópia se revia.
Cresceu, adiantou conhecimentos;
nada, mais natural. Depois, seu filho,
se o tiver, lançará mais longe a barra.

FAUSTO

Que ditosa ilusão, supor que ao homem
seja dado emergir do mar dos erros!
O que é mister saber, ninguém no atinge,
e o que se alcança para nada presta.

(Após alguns momentos de absorção:)

Fora com tais tristezas, que destoam
deste festivo dia!
Cede, ó alma, aos rebates da alegria!

Que lindeza de tarde! Olha os casais fronteiros
engastados no verde, e como estão festeiros,
banhados no esplendor do sol que vai fugindo!
Mais um dia vivido, um dia mais que é findo.
Vê-lo lá vai agora, o astro procriador,
alegrar sucessivo, e encher de almo calor
terras, céus, regiões, montes, cidades, povos,
que em círculo sem termo avista sempre novos.
E eu, eu, que o sigo assim co'os votos e co'a mente,
sem asas, preso ao solo e escravo eternamente!
Que delícia montar num raio vespertino,
e acompanhar no curso ao grão farol divino,
vendo sob os meus pés, na imensa profundeza,
sem eu lhe ouvir nem som, girar a redondeza!
montes a trajar sol; vales escurecidos;
os regatos de prata, em oiro convertidos!
Abismos e alcantis da serra mais bravia
não serviram de empacho à minha etérea via.
Oh! pasmo! aí vem o mar co'as mornas enseadas!
Que é isto, ó sol! quem faz que aos olhos meus te evadas?
Cansei-me eu de o seguir? Como? Por quê?
Reassumo
do querer força nova; hei-de alcançar-te, ó sumo
voador luminoso, eterno fugitivo,
fartar-me em ti de luz, vulcão perene-activo.
O dia me precede; a noite me acompanha;
por cima os céus; aos pés a undísona campanha.

O Fausto (1790)Onde histórias criam vida. Descubra agora