Cena I

25 1 1
                                    

FAUSTO, entrando pela porta do fundo, que deixa aberta, seguido de um grande cão d'água preto

FAUSTO

Lá deixei planície, prados,
tristemente sepultados
na mudez da noite escura.
A alma pura sobre a impura
já cá dentro predomina
com sutis pressentimentos;
calca a essência alta e divina
as terrenas sensações.
Oh! que insólitos momentos!

Redimi-me das paixões,
que no âmago consomem
o melhor dos meus dois eus.
Só respiro afecto ao homem;
só respiro afecto a Deus.

(Voltando-se para o cão, que anda desassossegado)

Pára aí, cão! Já basta de corridas.
Que fariscas à porta? Ali tens lume;
vai-te deitar ao pé! Toma, cachorro,
a almofada melhor que tenho em casa.

(Atira-lhe para o pé do fogão a almofada de cima da cadeira em que se costuma sentar)

Já que lá no caminho da montanha
a correr e pular nos divertiste,
hei-de tratar-te bem, se o mereceres.

(Senta-se à mesa, e espevita o candeeiro)

Aqui sim, no meu cantinho
vendo rir-me o candeeiro,
gozo o bem de estar sozinho,
e esquecer o mundo inteiro.

N'esta mansa claridade
reamanhece o coração!
Dentro, há paz, serenidade;
raia luz, fala a razão;
refloresce a esp'rança amante;
e um saudoso instinto envida
em nosso ânimo anelante
o grão Ser, o Autor da vida.

(Uiva o cão)

Não me uives, cão! Tapa essa boca, bruto!
Belo acompanhamento às harmonias
que vão dentro de mim! Costume é de homens
zombar do que transcende a sua esfera;
belo e bom muita vez os incomodam,
por isso rosnam; queres tu, cachorro,
fazer-te igual juiz? rosnar como eles?

(Pausa)

Por demais é cansar-me. O júbilo celeste
foi-se, não volta mais. É força de desgraça,
oh minha alma sedenta, achar no ermo agreste
abundante matriz, entrar a encher a taça,
e cair, sem ter morto o ardor com que vieste!
Comigo é sempre assim. Paciência! O que inda val
como compensação, é esta ânsia inata
que nos ala o querer, do ínfimo escuro val,
às altas regiões, onde a alma se dilata,
em comunicação co'o sobrenatural.
Salve, ó revelação! Teu mais brilhante assento
é o Evangelho Santo, o Novo Testamento.
Cobiço perscrutar o texto primitivo,
e co'a maior lealdade, e o escrúpulo mais vivo,
transplantar, se puder, à locução materna,
à minha língua amada, a augusta frase eterna.

(Abre a Bíblia no Evangelho de S. João)

No princípio era o Verbo. É esta a letra expressa;
aqui está... No sentido é que a razão tropeça.
Como hei-de progredir? há 'í quem tal me aclare?
O Verbo!! Mas o Verbo é coisa inacessível.
Se apurar a razão, talvez se me depare
para o lugar de Verbo um termo inteligível...

Ponho isto: No princípio era o Senso... Cautela
nessa primeira linha; às vezes se atropela
a verdade e a razão co'a rapidez da pena;
pois o Senso faz tudo, e tudo cria e ordena?...
É melhor No princípio era a Potência... Nada!
Contra isto que pus interna voz me brada.
(Sempre a almejar por luz, e sempre escuridão!)
... Agora é que atinei: No princípio era a acção.

(Voltando-se para o cão)

Entendamo-nos, cão. Se te agrada o meu quarto,
não me tornes a uivar, que já 'stou mais que farto.
Não tolero ao meu lado um atrapalhador.
Desempata: — eu ou tu! — Dei-te abrigo e calor;
sou o teu hospedeiro, e da hospitalidade
não quero as leis quebrar. Tens plena liberdade:
se te agrada sair, bem vês a porta aberta.

(Vai-se o cão transformando, do modo que a fala indica)

Mas... que é isto que observo? Assim se desconcerta
das coisas o teor, o ser da natureza!
Sonho, ou velo?... O meu cão não tinha esta grandeza,
nem este corpanzil. E o súbito denodo
com que se ergueu de um pulo! Isto de todo em todo
não é já cão; os cães não tem esta figura.
Então, que génio mau, que horrenda diabrura
hospedei eu em casa? Ui! como vai crescendo!
Que hipopótamo é este! Horrendo vulto, horrendo!
Vibra chamas do olhar! ameaça co'a dentuça!...
Teu diabólico ser debalde se rebuça;
apanhei-te. Ora espera; e tu verás se o signo
do grande Salomão contra o poder maligno
de vós, relé do inferno, essências vis e imundas,
te não vai atirar de súbito às profundas.

ESPÍRITOS MAUS (no corredor)

Um de nós lá caiu na esparrela.
Companheiros, cautela, cautela,
não entreis em tal casa. Podemos
cá de fora observar; observemos.
E era um lince do inferno, o coitado
que lá jaz na armadilha atrusado
a tremer como um triste raposo.

Sus, escravos do perro tinhoso,
vogai para cá!
vogai para lá!

Acima e abaixo!
Com isso faredes
que o sócio oprimido
se livre do empacho
das magicas redes.
À obra! Sentido!
Sois-lhes todos devedores
de favores.
De os pagar é vinda a hora.
Ponde-o fora
da prisão que o desalenta.
Leva! Gira! Aferventa! Aferventa!

FAUSTO (abrindo um vade-mecum de magia)

Atiro-me ao bruto; primeiro, co'a fórmula
dos quatro chamada:

«Arda a Salamandra! Retorça-se a Ondina!
«Esvaia-se o Silfo! Da terra na mina
vá Gnomo lidar!»
(Quem não soubesse a fundo os elementos,
o seu poder, as suas qualidades,
por nenhum modo punha leis a génios.)

(Torna-se ao livro)

«Tu, se és Salamandra, salta flamejante!
«Se Ondina, difunde-te em vaga espumante!
«Se és Silfo, em meteoro te exala brilhante!
«Íncubo, Íncubo! acode! Protege a vivenda!
«Sai do chão, sai! Acabe tão longa contenda!»
Nenhum dos quatro é nele; está bem visto.
Nem se ergue, nem se move; olha-me fito,
imóvel que nem órbitas de crânio.
Inda lhe não fiz mossa. Em vão persiste;
a est'outra imprecação não me resiste:

(Voltando ao livro)

És tu do inferno prófugo,
bruto animal?
Então, encara, pícaro,
este sinal
que espanta as negras cáfilas
do antro infernal!

(Continua o bicho a inchar, esconde-se atrás do fogão; cresce até o tamanho de elefante; vai-se ainda desenvolvendo cada vez mais.)

Oh! que balofo inchar! que pelos hirtos!
Podes tu ler, maldito, o ente incriado,
o inefável, o que enche a imensidade,
o que expirou na cruz alanceado,
e redimiu da culpa a humanidade?

Olha aquilo! Emprazado atrás do lume,
cresce, intufa-se; é vulto de elefante.
Mais? enche tudo; em breves audiências,
vêl-o-eis desfeito em névoa.

(Ao bicho)

Não me esbarres
pela abóbada! Aqui! Aqui! Lançar-te
já já aos pés do Mestre! Toma tento,
que eu não ameaço em vão; bem o tens visto.
Tisno-te ao fogo sacro; não te exponhas
ao corisco trisulco! não provoques
das artes em que excedo a mais terrível!

O Fausto (1790)Onde histórias criam vida. Descubra agora