Cena III

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O MESMO, e UM RAPAZOLA, simplório e acanhadíssimo.

RAPAZOLA

Eu vim há pouco tempo. Desejava
falar, podendo ser, a um grande sábio
que diz que mora aqui.

MEFISTÓFELES

Muito obrigado
por tanta cortesia. Encontra um homem
como todos os mais. Já viu a terra?

RAPAZOLA

O meu empenho todo é que me tome,
Senhor Doutor, à sua conta. Eu venho
co'as melhores tenções; dinheiro, trago
quanto me baste; e sou rapaz sadio,
bem vê. Lá a mãezinha, essa, coitada,
é que lhe custou muito eu vir-me embora.
Mas eu, sim, eu... percebe-me? trazia
na ideia outra tineta: era uma ânsia
de vir para a cidade, e aprender tudo...
como o outro que diz...

MEFISTÓFELES

Pois, meu menino,
sou por dizer-lhe que acertou co'a a porta.

RAPAZOLA (depois de ter estado a considerar mudamente no aspecto da casa; e mudando para o tom de aborrido)

Falo a verdade. Quem me dera ver
já bem longe daqui! Estas paredes,
estes tectos arcados, aborrecem-me.
Faltam-me o espaço e o ar; nem folha verde,
nem árvore descubro. Em me sentando
no banco duro de uma sala destas,
já não vejo, não oiço, e nada entendo.

MEFISTÓFELES

Tudo vai do costume. Um pequenito
recém-nascido esquiva-se da mama,
depois já busca o bico, e chuchurreia.
Aplico el cuento: as tetas da ciência
vão sabendo melhor dia a dia.

RAPAZOLA

Quem já me dera pendurado nelas!
Mas se eu não sei trepar!

MEFISTÓFELES (sentando-se doutoralmente na cadeira de Fausto, e deixando o rapaz em pé)

Vamos por partes.
Que faculdade elege?

RAPAZOLA

Eu sei! queria
tornar-me sabichão de maço e mona.
Queria compreender a natureza
e abarcar a ciência; o que se avista
na terra, e o que há no céu.

MEFISTÓFELES (que em todo o diálogo vai, de vez em quando, tabaqueando o caso, de uma grande caixa, que tirou do bolso, e pôs em cima da mesa)

E deu co'a estrada.
O tudo está em conservar o acúmen
da aplicação científica, evitando
pestes scientiæ as distracções.

RAPAZOLA

Percebo.
E essa gana trago eu. Só lembro o gosto
que eu teria, aos domingos de bom tempo,
em saltar por 'í fora.

MEFISTÓFELES

Foge a vida
more fluentis aquæ. Necessário
se faz logo com regra aproveitá-la.
Siga, amiguinho, siga o meu conselho,
que não se há-de dar mal.

(Levanta-se)

E antes de tudo
muito colegium logicum; por ele
é que um novato aprende a enfiar justinho
os pés da mente em botas à espanhola,
que assim é que é seguir, sereno e cauto,
pé ante pé, a via das ciências,
em vez de andar pulando a um lado e a outro,
qual fogo fátuo em chão de cemitério.
Depois, levam-se meses a ensinar-lhe
o que antes de ensinado é já sabido,
como o comer, como o beber, et cœtera;
Naturæ donam, sapiência infusa,
mas vulgar, mas sem brilho e sem relevo.
Acode um sábio; espostejou-se a coisa:
«Um, dois, três.» Sim senhor, é o que lhe digo.
A alma, que de ideias nos faz teias,
é como o tecelão, quando se esmera
em obra de examina: a cada piso
que ele na apianha dá, mil fios move;
voa, indo e vindo a lisa lançadeira;
no ordume a trama às cegas se entretece;
um golpe só fez tudo.
Ora o filósofo
bate a pata do espírito, e provou-nos
que o que é, devia ser; sendo o primeiro
isto, e aquilo o segundo, é consequência
ser o terceiro assim, e o quarto assado.
É corolário pois, que suprimidos
o primeiro e o segundo, era impossível
que existissem jamais terceiro e quarto
«Bela demonstração!» proclama à uma
a escola toda... mas nem meio ouvinte
nos saiu tecelão.
Pretende um sábio
conhecer e pintar qualquer vivente:
lança-lhe a garra e avia-o. Tem sem dúvida
todas as partes dele. O que lhe falta?
Unicamente o seu vivaz liame:
Encheiresin naturæ o chama a química.
Zomba de si, sem perceber que zomba.

O Fausto (1790)Onde histórias criam vida. Descubra agora