Cena II

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FAUSTO, por trás da grade, com um molho de chaves e uma lanterna. MARGARIDA, deitada na cama de rosto para o espectador, ferros aos pés e nos pulsos, e o cobertor por cima de si; está pálida, e numa espécie de sonolência.

FAUSTO

Arrepios assim nunca eu senti. (Fraqueza
da humana condição.) Aqui, nesta escura,
nesta humidade infecta onde entro horrorizado,
e que ela está vivendo, é que ela tem penado
por um sonho de gosto horas sem fim de luto.

Que é isto, coração! Tremes irresoluto
no momento de ir vê-la! A sua aparição,
que tem para assustar-te? Avante, coração!
Valor! Para a salvar apenas resta um passo.
Cada instante perdido acerca-a do trespasso.

(Mete a chave na fechadura.)

MARGARIDA (cantando em delírio)

Nasci de uma perdida.
Gerou-me um salteador.
A mãe roubou-me a vida.
O pai tragou-me em flor.
Saltou-me a irmã vizinha
do fresco seu coval;
mudou-me em avezinha
no agreste matagal;
fugi da terra feia;
vim ser feliz no ar;
aqui só me recreia
voar, voar, voar.

FAUSTO (diligenciando abrir a fechadura)

Ah! Mal sabe a infeliz, que o seu querido ausente
já tão perto lhe está, que lhe ouve claramente
o tinir dos grilhões, das palhas o soído,
cada vez que revolve o corpo dolorido.

(Entra)

MARGARIDA (desvairada, envolve-se no cobertor, voltando-se para a parede)

Jesus, vê-los lá vem! Que horrendo fim!

FAUSTO (mansinho)

Não tremas.
Não grites; sou eu; venho arrancar-te as algemas
salvar-te.

MARGARIDA (arrastando-se para Fausto)

Se és acaso um ente humano, e pode
tocar-te um mal extremo, ao meu martírio acode!

FAUSTO

Silêncio! O teu clamor acorda os guardas.

(Pega nos grilhões para os abrir.)

MARGARIDA (de joelhos)

Não!
Não! Quem te deu licença, algoz, de me pôr mão?

Antes da meia noite! É cedo. Tem piedade!
Um pouco mais de vida! Espera a claridade!

(Levanta-se)

Sou tão nova, tão nova! Hei-de morrer tão nova?
Meu Deus! diz que sou bela, e vou por isso à cova.
Ai! qu'é do meu querido? antes sempre ao meu lado,
e agora tão distante? a c'roa do noivado
desmanchou-se-me; o pó sumiu-lhe as tristes flores.

(Fausto forceja para a levar)

Larga-me os pulsos, larga! «Acrescentar-me dores,
selvagem! para quê? fiz-te algum mal? até
nunca te vi.

FAUSTO

Que transe!

MARGARIDA

Estás-me aqui ao pé;
bem vês que te não fujo. É mister que amamente
primeiro o meu menino, e depois o adormente,
que toda a santa noite a levámos de vela,
a criancinha a rir-me, e eu a afagá-la a ela.
Para me atormentar, furtam-ma, e agora teimam
que a matei eu! Vê, vê, co'as penas que me afreimam
se posso nunca mais ter hora de alegria?
Até já pela rua (olha que tirania!)
cantam a Margarida; a moda é moda antiga,
mas comigo é que entende a letra da cantiga.

O Fausto (1790)Onde histórias criam vida. Descubra agora