Cena I

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MARGARIDA, FAUSTO, MARTA, e MEFISTÓFELES

(Esta cena complexa é ordenada do seguinte modo: Formam-se dois grupos: Margarida, de braço dado com Fausto; Marta com Mefistófeles. Estes dois pares, cada um dos quais trata assunto inteiramente desligado do do outro, passeiam desencontradamente: um sobe o teatro até o fundo, enquanto o outro desce do fundo até o proscénio. Cada um deles, tanto ao aproximar-se, como já defronte dos espectadores, diz as respectivas falas, enquanto o outro mais distante, só pelos gestos se conhece que está conversando.)

MARGARIDA (pelo braço de Fausto)

Por ver que eu nada sei, é que o senhor só usa
dessas falas tão chãs. Sinto-me até confusa
da minha estupidez. Um sábio viajante
tratar tão mão por mão co'uma pobre ignorante!
É força de bondade!

FAUSTO

O que te sai dos lábios,
o que te luz no olhar... diz mais que dez mil sábios
para o meu coração.

(Beija a mão dela)

MARGARIDA

Jesus! Não se incomode,
meu senhor! Mão grosseira assim, como é que a pode
beijar um cavalheiro? Em casa não há lida
para que a minha mãe não chame a Margarida:
então bem vê que as mãos...

(Vão subindo, enquanto o outro par vem descendo.)

MARTA

Não sei como se atura
andar sempre a viajar.

MEFISTÓFELES

Tive esta sina escura;
que lhe quer? é dever; segui esta carreira.
Deus sabe quanta vez, por mais que um homem queira
dilatar-se num sítio, a atroz necessidade
o arroja para longe, e zomba da saudade!

MARTA

Nos anos verdes, vá; lá pode achar-se gosto
no andar correndo mundo; agora, no sol posto,
quando já vem caindo as sombras da velhice,
acho eu que um solteirão, que não se prevenisse
de um arrimo de amor, enquanto a idade o aprova,
para depois descer manso e chorado à cova,
grande pesar curtira.

MEFISTÓFELES

Essa aflição tardia
já só de a imaginar me assombra de agonia.

MARTA

Então não perca tempo!

(Vão subindo, enquanto o outro par vem descendo.)

MARGARIDA

Ah! sim, longe da vista,
longe do coração. Por mais que afirme e insista,
não me há-de convencer de que esses seus louvores
passem de um comprimento usual entre senhores.
Por força que há-de ter no rol da gente imensa
com quem trata e convive, e que aprendeu e pensa,
quem discorra melhor de que eu, que não sei nada,

FAUSTO

Crê, crê, mulher sem par, que vives enganada.
Bastas vezes no mundo o nome de ciência
é c'roa da vaidade, e véu da insipiência.

MARGARIDA

Não percebo.

FAUSTO

Faz dó ver a simples candura
ignorar sua ingénua e santa formosura.
Pródiga natureza! A modesta humildade
é o mais formoso dom que hás feito à humanidade!

MARGARIDA

Acha que hei-de alembrar-lhe alguma vez por lá?
Eu cá, não se pergunta; a mim não se me dá
de nada mais no mundo; então...

O Fausto (1790)Onde histórias criam vida. Descubra agora