Cena II

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FAUSTO e MEFISTÓFELES, que desceu rapidamente no meio de um relâmpago desde o alto das rochas.

MEFISTÓFELES (chegando-se a Fausto)

Com que então, já cansou? Depois da faina
da boa vida que levámos juntos,
tornou-se a divertir? De tempo a tempo,
bom é que se descanse um poucochinho.
Isso é que abre o apetite e aumenta as forças.
Vamo-nos procurar mais novidades.

FAUSTO

Não tens mais que fazer, que vir tentar-me
nas horas boas?

MEFISTÓFELES

Co'a melhor vontade
o entrego a si, se quer; declare-o franco:
vai-se-me um sem-sabor, grazina e doido;
forte perda! levar o dia inteiro
sempre a servi-lo, sem lhe ler nas trombas
nunca jamais se está ou não contente!

FAUSTO

Bravo! O diabo sempre a atanazar-me,
e quer que inda por cima eu lho agradeça!

MEFISTÓFELES

Que seria de ti, filho do barro,
se não fosse eu, que te ando há tanto tempo
a curar de esquentadas fantasias?
Tinhas-te já safado deste mundo,
há que folhas!
Não sei que te aproveita
o andar poisando, à laia de coruja,
neste lapedo bronco; e o pró que tiras
de alimentar-te como o sapo inerte
do bafio de musgo e covas húmidas.
Que belo, que aprazível passatempo!
Sabes o que te eu digo? é que inda alojas
nesse corpo o Doutor.

FAUSTO

Não, que nem sonhas
que de força vivaz neste ermo alpestre
já tenho haurido em mim; se a bem souberas,
tão demo és tu, que por furtar-ma davas
trinta voltas no ar.

MEFISTÓFELES (ironicamente)

Se há gosto, é isso!:
Velar a noite à chuva pelos brejos,
abraçar com volúpia o céu e a terra,
empantufar-se a crer-se divindade,
fossar o mundo à cata do secreto,
volver no caco a obra dos seis dias,
sonhando-se Factor Arqui-potente...
não sei de quê, finando-se de amores
por quanto objecto avista, e desvestido
o invólucro terrestre, achar-se ao cabo
de tantas intuições maravilhosas,
a fazer... a fazer...
Cala-te, boca!

FAUSTO (indignado)

Passa fora!

MEFISTÓFELES

Isso mesmo: um passa fora
é a única resposta a quem profana
ouvidos castos, mencionando... coisas...

(Sorrindo)

Mas vá lá: se o divertem mentirinhas
pregadas a si próprio, outorgo vénia
como seja com regra. Acho contudo
que o meu Doutor, nesse papel sublime
depressa há-de cansar.

(Notando que Fausto lhe trejeita de agastado)

Ei-lo assomado
já outra vez! Se vai por essa via,
cedo recai na insânia e nos terrores.

(Mudando de tom)

Falemos de outro assunto. O seu benzinho,
sabe o que está fazendo? Está sentada,
no seu quarto, sozinha, o peito em ânsias,
o pensamento a monte; a sua teima
é toda o sujeitinho; e quer-lhe! quer-lhe
que não há mais dizer. Valha a verdade,
a paixão do Doutor teve rompantes
de furiosa lava; incendiou-a,
mas coalhou pouco a pouco, e está já fria.
Quer-me a mim parecer, que o potentado
deste reino silvestre acertaria
em no abdicar, e recolher-se amante
ao seio da gentil desconsolada.
Como ela vai fiando as horas longas!
Encostada à janela, agora mesmo
já está olhando o caminhar das nuvens
para a muralha antiga da cidade.
Daqui lhe escuto a usada cantilena:

Tomara ser passarinho.
para ir ter onde eu desejo;
depressa formara as asas,
que as penas são de sobejo.

Nisto de sol a sol consome os dias;
nisto de sol a sol desvela as noites.
Se alguma rara vez lhe assoma às faces
vislumbre de alegria, as mais das vezes
de mortal pesadumbre as tem nubladas;
ora mostra no rosto mal enxuto
sinais de ter chorado, ora parece
a poder de cansada estar serena...
mas sempre namorada.

FAUSTO

Ah, cobra, cobra!

MEFISTÓFELES (à parte sorrindo)

Cáspite! enrodilhei-te.

FAUSTO

Amaldiçoado!
Sume-te! e nunca mais boquejes nela.
Não tornes a acender-me nos sentidos
inda revoltos o desejo infrene
de ter nos braços tão suave prenda!

MEFISTÓFELES

Mas enfim que resolve? A rapariga
julga-o fugido... e não se engana.

FAUSTO

Como,
se eu lhe vivo tão perto, e não na esqueço,
nem querendo esquecê-la o poderia,
por maior que entre nós fosse a distância
Ouve! É tanto que até, quando a imagino
ajoelhada e contrita à mesa santa
ao corpo consagrado tenho inveja

MEFISTÓFELES

Como eu, quando imagino o meu amigo
pascendo rosas... no amorável horto
de dois gémeos que eu sei.

(Apontando para o selo.)

FAUSTO

Fora, alcoveto!

MEFISTÓFELES

Bom; insulta-me, e eu rio. O fabricante,
quando inventou rapaz e rapariga,
tomou a si o deparar-lhe ensejos.

(Ironicamente a Fausto)

Coitado! Faz-me dó, que em realidade
ir para o quarto dela ou para a forca
vem quase a dar na mesma!

FAUSTO

É céu na vida
sentir-me entre seus braços, repassado
no calor de tal seio... e todavia
mal sabes como até nesses momentos
co'o pensar que a desgraço estou penando!...
Eu sou um foragido, um pária, um monstro,
que, sem ver norte, sem gozar descanso,
se despenha caudal, de fraga em fraga,
via do abismo; e ela! uma criança
tão simplesinha, que trocara o mundo
por se ver, num recôncavo dos Alpes,
ditosa dona de um feliz tugúrio,
onde sempre a lidar, fosse rainha.

(Falando consigo mesmo)

Não te bastou, vil réprobo, a jactância
de arrasar o universo, inda por cima
quiseste destruir a paz deste anjo.
Os caídos no inferno inda eram poucos?
Sus, sus, diabo! O teu auxílio imploro!
Ajuda-me a encurtar este suplício!
O que há-de ser que seja! A sorte dela
despenhe-se na minha, e pereçamos!

MEFISTÓFELES

Ih, como torna a arder! Vá daí, tonto,
vá consolá-la! Um néscio destes cuida,
se não vê logo furo, estar perdido.
Com gente denodada é que me eu quero.
Pontos há em que o julgo outro diabo;
mas diabo que logo desanima
é coisa que eu não levo à paciência.

O Fausto (1790)Onde histórias criam vida. Descubra agora