1- Parte III 💀

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Tossi de novo, desta vez uma tosse bem molhada e nojenta. O nerd fez um barulhinho tangente e saiu correndo em direção à sala da senhora Day, apertando uma tábua de xadrez contra o peito esquelético. Acho que haviam mudado o encontro do clube de xadrez para segunda-feira depois da escola.
Vampiros jogam xadrez? Vampiros eram nerds? E vampiros chefes de torcida estilo Barbie? Algum vampiro tinha banda? Será que os vampiros eram emos esquisitos do tipo que usam calças de garotas e aquelas franjas tenebrosa que cobrem metade da cara? Ou seriam todos que nem aqueles góticos que não gostam de tomar banho? Será que eu ia virar gótica? Ou pior, será que eu ia virar emo? Eu não gostava muito de usar preto, pelo menos não o tempo todo, nem estava sentindo súbita aversão por água e sabão, e nem estava com nenhuma vontade obsessiva de mudar o estilo do meu cabelo e exagerar no delineador.
Tudo isso girava em um turbilhão em minha mente quando senti novamente a vontade de gargalhar e deixar escapar o nervoso que estava preso em minha garganta. Quase agradeci por ter saído apenas como tosse.
-Zoey? Você está bem? - a voz de Kayla soou tão alta, como se alguém a estivesse beliscando, e ela deu mais um passo para  trás afastando-se de mim.
Eu suspirei e senti minha primeira faísca de raiva. Eu não havia pedido por nada disso. K. e eu éramos melhores amigas desde da terceira série e agora ela estava olhando para mim como se eu tivesse virado um monstro.
- Kayla, sou eu. A mesma de dois segundo atrás e duas horas atrás e dois dias atrás - fiz um gesto de frustração em direção à minha cabeça latejante. - Isto não muda quem eu sou!
Os olhos de K. ficaram molhados de novo, mas felizmente O telefone celular dela começou a tocar  Material Girl, de Madonna (música tema do capítulo postado na mídia). Automaticamente, ela deu uma olhada para ver quem estava ligando. Pela cara de espanto dela, eu podia jurar que era Jared, seu namorado.
- Vá - eu disse com voz cansada e inexpressiva - pegue carona para casa com ele.
Seu olhar de alívio foi como um tapa na minha cara.
- Ligue para mim - disse ela, olhando rapidamente para trás e batendo em retirada pela porta ao lado.
Fiquei olhando enquanto ela saiu correndo pelo gramado leste em direção ao estacionamento. Deu para ver que ela estava com o celular grudado na orelha e conversando toda animadinha com Jered. Tenho certeza que ela já estava contando a ele que eu estava virando um monstro.
O problema, claro, era que me transformar em monstro era a mais luminosa dentre minhas duas opções. Opção número um: eu viro vampira, o que significa monstro na cabeça de praticamente todo ser humano. Opção número dois: meu corpo rejeita a mudança e eu morro. Para sempre.
Então a boa notícia é que eu teria que me mudar para a Morada da noite, um internato no centro de Tulsa que era conhecido entre todos os meus amigos como Escola de Aperfeiçoamento de Vampiros, onde durante  os próximos quatro anos eu passaria por transformação bizarras e mudanças físicas indescritível, bem como uma total, permanente e drástica mudança de vida. Isso se o processo todo não me matasse.
Ótimo. Eu não queria fazer nenhuma das duas coisas. Só queria tentar ser normal, apesar do fardo de meus pais mega-conservadores, do ogro do meu irmão mais novo e da minha irmã tão perfeitinha. Eu queria passar em geometria. Queria manter minhas notas altas para ser aceita no curso de veterinária da Universidade de Oklahoma e queria cair fora de Broken Arrow, Oklahoma. Mas o que mais queria era me encaixar - ao menos na escola. Em casa era esperança perdida, de modo que tudo que me restou foram meu amigos e minha vida longe da família.
Agora isso também estava sendo tirado de mim.
Eu esfreguei a testa e me descabelei até cobrir parcialmente meus olhos e, com sorte, a marca que aparecerá sobre eles. Mantendo a cabeça abaixada, corri até a porta que dava para o estacionamento dos alunos.
Mas parei pouco antes de sair. Pelas  janelas abertas que ladeada as portas de aparência instrucional pude ver Heath. As garotas se aglomeravam ao redor dele, fazendo pose e jogando os cabelos, enquanto os caras do lado de fora faziam manobras ridículas em suas enormes picapes, tentando (mas geralmente não conseguindo) parecer descolados. Não dá para entender como eu escolheria isso para me atrair? Não, para ser justa comigo mesma, devo lembrar que Heath costumava ser incrivelmente doce, e ainda agora ele tinha seus momentos. Principalmente quando se dava ao trabalho de se manter sóbrio.
Os risonhos histéricos e agudos das garotas voaram rapidamente do estacionamento até mim. Ótimo. Kathy Richter, a maior cachorra da escola estava fingindo que dava um tapa em Heath. Até mesmo de onde eu estava ficava óbvio que ela achava que bater nele era algum tipo de ritual de acasalamento. Como sempre, o sem-noção do Heath só  ficou parado, rindo. Ora, que inferno, pelo jeito meu dia não ia melhorar em nada. E meu fusca 1966 azul-ovo-de-pintarroxo estava  bem no meio deles. Não, eu não podia ir até lá. Não podia caminhar no meio de todos eles com este troço na minha testa. Jamais conseguiria ser parte deles outra vez. Já sabia muito bem o que eles fariam. Lembrei-me do último garoto que um Rastreador escolhera na escola.
Acontecera no começo do ano letivo passado. O Rastreador chegara antes da escola começar suas atividades e escolheu o garoto como alvo quando ele estava caminhando para sua primeira aula. Eu não vi o Rastreador, mas depois vi o garoto, só por um segundo, depois que ele largou os livros e saiu correndo do edifício com sua nova Marca brilhando na testa pálida e com suas bochechas muito brancas lavadas por lágrimas. Jamais me esqueci como os corredores estavam cheios naquela manhã e como todo mundo se afastou quando ele tentou fugir pela porta da frente da escola, como se ele tivesse alguma doença contagiosa. Eu fui uma das que recuou e ficou olhando quando ele passou, apesar de sinceramente sentir muito por ele. Só não queria ser rotulada como uma daquelas "garotas amigas de esquisitos". Meio irônico, não é?
Ao invés de ir para meu carro, fui para o toalete mais próximo que, felizmente, estava vazio. Havia três cabines - sim, eu conferi duas  vezes para ver se via os pés de alguém. Em uma das paredes havia duas pias, sobre as quais estavam pendurados dois espelhos de tamanho médio. Em frente ás pias havia uma parede coberta por um enorme espelho sob o qual existia uma prateleira para colocar escovas, maquiagem e qualquer outra coisa. Pus minha bolsa e meu livro de geometria sobre ela, respirei fundo e, com um só movimento, levantei a cabeça e escovei meu cabelos para trás.
Era como olhar para o rosto de um estranho familiar. Sabe aquela pessoa que você vê no meio da multidão e jura que conhece, mas não conhece? Agora está pessoa era eu: a estranha conhecida. Ela tinha os meus olhos, que ostentavam o mesmo tom de avelã que parecia indeciso entre o verde ou o castanho. Mas meus olhos nunca foram tão grandes e redondos. Ou foram? Ela tinha os meus cabelos - longos e lisos e quase tão escuro quanto os de minha avó antes de começarem a ficar grisalhos. A estranha tinha as minhas pronunciadas maçãs do rosto, nariz longo e lábios fartos - mais traços de vovó e seus antepassados Cherokee. Mas meu rosto jamais fora tão pálido... talvez apenas parecesse pálido em comparação com o desenho azul-escuro de uma lua crescente perfeitamente posicionada no meio de minha testa. Ou quem sabe fosse aquela horrenda luz fluorescente. Torci para que fosse a luz.
Olhei fixo para a exótica tatuagem. Misturada as minhas feições Cherokee, parecia uma marca de bestialidade... como se eu pertencesse a tempos ancestrais, quando o mundo era maior... mais bárbaro.
Depois deste dia minha vida nunca mais seria a mesma. E por um momento - só por um instante - me esqueci do horror de ser excluída e senti um chocante estouro de prazer, enquanto internamente regozijava o sangue do povo de minha avó.

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