𝑃𝑟𝑜𝑙𝑜𝑔𝑜

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Água

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Água. Provavelmente o elemento que eu mais gostava nessa vida. Eram infinitas suas propriedades e os benefícios, ultilizada em tudo, e muito almejada por todos. Podia matar a sede, dar vida a uma planta, ou tirar a de um ser vivo, caso submerso a tempo suficiente.

Eu gostava pela calmaria que me trazia. Uma sensação de paz que entrava pela ponta dos dedos e relaxava cada músculo. Parecia um entorpecente. E quando criança, tive o privilégio de desfrutar muito dele: cresci na beira de praia, surfando, boiando, e explorando os imensos terrenos aquáticos existentes. Graças a meu pai, Henrique Leblanc, sempre tive muito contato com a natureza. Formado em biologia e trabalhando na reserva natural de Miami, fazia parte da rotina ter que estudar sobre a vida, hábitat e alimentação dos animais, principalmente os que viviam na água. Para quem o conhecia, era óbvia sua paixão pelos seres vivos, fossem eles selvagens ou não. Eu via, diariamente, seus olhos brilharem ao falar sobre suas teses malucas — ou nem tanto —, e aos poucos, comecei a me infiltrar no assunto. Li os livros espalhados pela casa, analisei matérias e até assisti documentários, daqueles que quando criança eu jurava que nunca iria gostar, para finalmente entender uma parte daquilo. Do quão grandiosa a mãe natureza era, e continuava sendo todos os dias. De repente, tínhamos mais que o vínculo de pai e filha nos unindo, como também a paixão - ou a minha admiração — pela vida, no geral. Ficamos inseparáveis, feito unha e carne. O ajudava no trabalho quando mamãe deixava. Era eu quem ele chamava quando precisava de uma opinião, ou quando um episódio novo do nosso documentário sobre vida animal era lançado.

Estava tudo perfeito. Até acontecer.

Foi numa segunda a noite. Chovia muito, um alerta de tempestade tinha sido notificado na rádio e as estradas foram interditadas. Menos a leste, quase no fim da cidade, e que meu pai sempre usava como atalho para chegar em casa mais rápido. Eu estava no banco do carona, tocava música eletrônica, conversamos sobre uma espécie nova de coruja que conhecemos, e no banco de trás três ingressos para o zoológico de Miami se escondiam entre as folhas de um caderno rabiscado. Era um presente para mamãe, e também para nós. Um evento em família, para conhecer as girafas — das quais mamãe era apaixonada — e todos os animais que desse. Eu estava muito animada.

Foi questão de segundos. Uma luz forte apareceu e desapareceu na mesma velocidade. Logo depois, a pancada veio. O impacto do caminhão contra o nosso carro foi tão forte que eu senti meu corpo ir e voltar para trás duas vezes. O carro capotou. Uma. Duas. Três. Quatro vezes. Cacos de vidros se enfiaram debaixo da minha pele e minha cabeça bateu contra o painel tantas vezes que meu cérebro não conseguia nem processar a dor. Quando parou, um zunido irritante ficou nos meus ouvidos, e escorria uma quantidade absurda de sangue da testa. Eu não sentia direito minhas pernas, e tive medo de olhar para baixo.

Mas, certamente, eu não chegava aos pés do meu pai. Eu soube depois que Henrique havia virado o volante antes dos veículos se chocarem, para que o dano maior fosse direcionado a sua área. Os braços retorcidos num ângulo esquisito, a cabeça pendendo pro lado e a pele assumindo uma tonalidade pálida tão rápido foram as únicas — e principais — coisas que meus olhos trêmulos flagraram. Eu não precisava ser nenhuma médica para saber que ele havia morrido. Estava evidente. E naquele dia, eu desejei morrer também.

Eu não lembro de muita coisa depois. Som de vozes, sirenes e muita dor. O resto virou um borrão. E eu vivi.

Minha única sequela, nove meses depois do acidente — e atualmente — foi uma longa cicatriz na parte interna da coxa. Eu quase perdi o movimento das pernas, e os médicos disseram que se a pancada tivesse sido um pouco mais forte, certamente teria acontecido. Eu era muito agradecida por não ter sido o caso.

E então, chegavamos ao ponto da mudança, em que eu e minha mãe, Angélica, estávamos dando a volta no mundo para conseguir chegar a Forks. Era literalmente longe pra caramba, e com clima e bioma distintos. Forks era conhecida por sempre, sempre mesmo, estar chovendo ou nublada, raramente tendo a aparição do sol. Além de ser do tamanho de um ovo. Era a típica cidade que você nasce, vive e morre. Um ciclo vicioso que eu estava prestes a fazer parte.

Não por vontade própria, é claro, mas desde a morte do meu pai, as coisas ficaram realmente difíceis. Era seu salário que sustentava a casa, e com a ausência dele, tivemos que correr atrás de algo. Angélica tentou uma oportunidade na área jornalística, da qual era formada, e eu consegui um bico de garçonete. Porém, vivíamos no aperto e economizando o máximo possível. Então, a oferta de colunista no jornal local de Forks chegou, e soou como a salvação dos nossos problemas. Não houve tempo de decisão: ou íamos ou continuavamos sem ter a certeza de que teríamos o que comer amanhã. Não era uma escolha difícil.

No entanto, não tinha como negar que aqui, nessa minúscula cidade, o sentimento de desagrado azedava minha boca. Eu eventualmente passei a evitar a chuva, quase que involuntariamente, e estar num local que oferecia isso 100% dos dias era horrível. Um verdadeiro inferno.

Ah, como a vida gostava de pregar uma peça, e eu sabia bem disso. Principalmente para aqueles que não merecem. Ou talvez, o universo me detestasse.

Senti uma mão sobre meu joelho, e desviei a atenção para Angélica.

Alina? — Me chamou, docemente. Eu adorava a forma que meu nome soava na sua língua nativa, o francês. — Está tudo bem? Quer parar um segundo para descansar?

Cobri sua mão com as minhas, e forcei um sorriso. Não iria incomodá-la com meus sentimentos e nem tornar nossa moradia na cidade desagradável. Eu iria tentar, assim como ela, por nós. Por Henrique.

— Não, mãe, eu estou bem. Um pouco ansiosa para ver a casa, na verdade. — menti, na esperança de despreocupá-la. E deu certo. Os olhos verdes se iluminaram. — É bonita? Você não me falou muito sobre ela.

Mamãe riu, voltando a focar o olhar na estrada.

— É linda, tenho certeza que você vai gostar. — garantiu, sorrindo. Ela deu um pulinho no banco, apontando para algo logo a frente. — Olha, a placa, chegamos na entrada da cidade!

Segui a direção, e meus lábios arquearam em desgosto.

— É... — Comecei, engolindo um nó na garganta. Forcei outro sorriso. — Estamos em Forks.

𝑰𝑹𝑹𝑬𝑺𝑰𝑺𝑻𝑰𝑽𝑬𝑳 ― 𝐽. 𝐻𝑎𝑙𝑒Onde histórias criam vida. Descubra agora