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POR VOLTA DAS dez horas da noite, Gilbert, que esperava impacientemente a volta dos viajantes, deixou o padre Eldred no quarto de Ritson e desceu até onde estava Marguerite, que arrumava a casa. Queria saber se miss Marian não estava muito preocupada com a demora do irmão.

— Miss Marian? — surpreendeu-se Marguerite que, abalada com sua dor, não havia dado por falta da jovem. — Miss Marian? Provavelmente está no quarto.

Gilbert foi averiguar. O aposento estava vazio.

— São dez horas, Maggie, dez horas e essa moça não está em casa.

— Ela esteve passeando com Lance na alameda da frente.

— Talvez tenha se afastado e se perdido! Ah, Maggie, morro de medo e espero que nada de ruim tenha acontecido. Já são mais de dez horas! Tão tarde assim, na floresta, só os lobos e os fora da lei estão acordados.

Gilbert pegou seu arco e flechas, uma adaga bem afiada e partiu à procura de Marian. Ele conhecia bem toda aquela mata, desde as árvores às moitas e clareiras; pretendia então revirar cada trecho que sabia perigoso para uma mulher.

— Preciso encontrá-la — dizia o tempo todo para si mesmo. — Por são Pedro, preciso encontrá-la.

Guiado pelo instinto, ou antes, por essa espécie de premonição que adquirem os homens da floresta por força do hábito, Gilbert escolheu exatamente o caminho seguido por Marian até o local em que ela havia descansado. Lá chegando, achou ouvir um surdo gemido à beira de uma aleia próxima, num ponto em que a espessa folhagem não deixava que penetrassem os raios de lua. Prestou atenção e notou que os gemidos se misturavam a fracos ganidos, agudos e doídos como os de um animal que sofre. Era grande a escuridão e Gilbert tateou até o local de onde partiam os gemidos. À medida que se aproximava, os lamentos foram ficando mais nítidos e, de repente, os pés do guarda esbarraram numa massa inerte estirada no chão. Abaixou-se, estendeu o braço e sua mão tocou o pelo longo, e grudento pelo suor frio, de um animal. Animal que, parecendo se reanimar ao contato da mão, fez um movimento — e os lamentos se transformaram em débil latido de reconhecimento.

— Lance, meu pobre Lance! — exclamou Gilbert.

O cão tentou se pôr sobre as patas, mas, exausto com o esforço, voltou a cair com um gemido.

— Uma terrível desgraça aconteceu à pobre moça e Lance, tentando defendê-la, foi ferido — pensou Gilbert. — Aqui, Lance, aqui! — dizia ele acarinhando o fiel animal. — Pobre amigo, onde está machucado? Na barriga? Não. No lombo? Nas patas? Não e não. Ah, na cabeça! O patife quis arrebentá-la... Bom, não vai morrer disso. Você perdeu muito sangue, mas ainda tem de sobra... O coração bate, sinto-o bater forte e não é como o de quem está morrendo.

Como toda a gente do campo, Gilbert conhecia as virtudes medicinais de certas plantas e foi colher algumas nas clareiras vizinhas, onde a escuridão era amenizada pelos primeiros raios da lua. Depois de macerar com duas pedras as folhas que encontrou, colocou a pasta sobre o ferimento de Lance mantendo-a com um curativo improvisado com uma tira do seu capote de pele de cabra.

— Vou ter que deixá-lo aqui, amigo, mas fique tranquilo, venho buscá-lo. Enquanto isso, descanse em cima desse leito de folhas secas e cubro seu corpo com outras para que não tenha frio, meu bom Lance!

O velho mateiro falava com seu cão como a um ser humano. Pegando o animal nos braços, transportou-o até um ponto de denso matagal. Fez um último afago no fiel animal e voltou a procurar Marian.

— Por são Pedro! — murmurava Gilbert, investigando com olho de lince as matas e clareiras. — Por são Pedro! Se Deus tiver a bondade de pôr no meu caminho o filho do capeta que fez aquele estrago no couro do meu pobre Lance, ele vai dançar uma ciranda com as estocadas de minha adaga, como nunca dançou antes. Que patife! Que canalha!

O príncipe dos ladrões (1872)Onde histórias criam vida. Descubra agora