Capítulo 1 - CG

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Alguns anos atrás..

02:56

Acordo aos poucos, ainda sem me mexer, sonolenta e ouvindo uma conversa mansa vindo cozinha..

Xx: meu Deus.. que tristeza.. - ouvi uma voz conhecida. Parecia a voz da vizinha. Ainda estava escuro lá fora.. ouvia os grilos em melodia.

Xx: estamos todos sem ter o que dizer.. falar.. a ficha ainda não caiu.. - ainda me despertando, ouvi a voz de tristeza da minha família.

Xx: tão nova. Mas.. e agora? Como será? Você avisou alguém além de nós?? Tadinha dela.. ela ainda é uma criança..

Xx: não, ainda não.. - ouvi uma breve pausa - vou ter que ligar para o pai dela, para avisar.

Xx: seria bom.. assim ele consegue acalmar quando ela souber.. - olhei para o colchão no chão e não vi a minha mãe - ela ficou órfã.. - um aperto no peito veio. Ouvi alguém vindo até o quarto improvisado na sala, onde estava deitada. Finjo estar dormindo fechando os olhos. Ouvi pegar o telefone no cômodo anterior.. - oi, sou eu.. te liguei para avisar que a Lu, ela foi encaminhada as pressas para o hospital. Tinha passado mal nessa madrugada e.. ela não resistiu.. - firmei os meus olhos deixando as lágrimas cairem. Ainda estava deitada, ouvindo tudo calada - vem ficar com a sua filha.. ela também precisa de você nesse momento difícil.. - o meu coração se despedaçou.. não acreditando naquilo. Ela desligou o telefone e voltou para a cozinha.
Recentemente voltamos a morar na casa do meu avô. A minha mãe estava encostada, ela teve um problema em um dos braços na qual não conseguia mais mexer os dedos.. o derrame. Com essa doença, ela parou de trabalhar, de viver.
Me lembro de todos os dias que ela chorava de dor, escondida para eu não ver mas.. eu via, ouvia os seus sussurros de dor em prantos. Quando ela foi 'cortada' pelo governo e não tinha mais renda.. passamos dificuldades. Um dos motivos de ter voltado para a casa do meu avô. Lembro bem de tentar ajudar, jogando água gelada em sua mão para ver se melhorava, na intenção de estar fazendo algo por ela.. eu só via o seu olhar de ternura para mim. Ela fez tanto por mim. Como eu te amava, mamãe!
Eu olhei para o colchão no chão. Sim, eu estava dormindo na cama de solteiro e ela sempre dormia no colchão no chão, sempre sacrificando para o meu bem estar. Peguei o travesseiro dela e cheirei.. ali ainda estava o seu perfume.
Eu me levantei aos prantos quando a dor da lembrança invadiu o meu coração. Coloquei o meu chinelo e caminhei até a cozinha. Ali eu vi todo mundo, a família, os vizinhos, amigos mais próximos que se importavam com ela.. deixei as lágrimas cair e eles viram que eu já sabia. Corri para o quarto do fundo, onde a minha tia dormia, era o espacinho dela. Ela se aproximou de mim, entrando pela porta e me abraçou enquanto eu chorava de soluçar. Eu queria a minha mãe de volta!
Foram longos minutos chorando até que o meu pai chegou. Ele morava em outra cidade, uma cidade vizinha. Até ali ele era o meu 'herói'. Os meus pais eram separados. Quando eu tinha 3 anos de idade, a minha mãe se separou dele saindo de casa e me levou com a mudança. Nisso, eles tinham a minha guarda compartilhada. Porém, para o desgosto dela, eu vim com fortes traços visuais dele. Os olhos puxados, bugres.. o cabelo escuro, a cor de pele meio 'cafe com leite' que era uma mistura por ela ser branca e ele moreno. Enfim, eu nasci..

Algum tempo depois..

Depois da despedida, do enterro memorial dela.. por lei eu tinha que ir morar com o meu pai, já que a minha mãe não estava mais ali. Fui morar com ele, na cidade vizinha, só levando as minhas roupas e nada mais. Ele tinha se 'casado' novamente. Já tinha filho. A sua atual 'esposa' era anos mais jovem que o meu pai. Porém, eu não sabia que isso seria o meu 'inferno' aqui na Terra.

Anos depois..

Eu tive que amadurecer querendo ou não. Quem me viu antes, hoje não acredita que seja a mesma menina. Eu admito que era mimada. A minha mãe sempre me deu tudo com muito carinho, com muito suor mesmo não tendo condições.. porém quando me mudei para a casa do meu pai, tudo foi diferente. Aquela figura de um 'heroi', foi definhando até virar o meu pior pesadelo.
Ele nunca se deu bem com a família da minha mãe, sempre rolava intrigas, brigas por conta de mim. Para ele, eu era a sua "mina de ouro" pois recebia uma pequena quantia da pensão por morte dela e a leve herança que ela tinha me deixado. Ele por ser tutor legal já que eu era de menor, ele que mexia em tudo para mim, de 'legal' era só nome! Ele me afastou da minha família. Manipulou até o conselho querendo que eles ficassem longe de mim. Era o meu pior pesadelo.
Em seguida vieram mais filhos, mesmo sem condições. Convivendo dia após dia, vi alguém que me assustava na qual chamava de pai. Ele bebia muito, viciado em álcool, jogos de azar e devia para agiotas. Tudo o que ele ganhava, a grande maioria ficava em suas dúvidas. Ele tinha uma casa, porém vendeu para pagar dívidas e nisso, fomos morar de aluguel. Com o restante do dinheiro, ele comprou um carro usado para ir "trabalhar", na época foi no valor de 12 mil.
E.. algo que nunca esquecerei.. dos meus 9 até 11 anos sofri abuso sexual por parte dele. Ele chegava na grande maioria das vezes bêbado, fedendo a cana e quando a sua esposa ia tomar banho, ele me pegava. Lembro do gosto de bebida quando me beijava, aquele nojo, sempre segurando os meus lábios para dentro com os dentes para não beijar ele pois sentia nojo, agonia, náuseas.. lembro da dor quando me estourava brutalmente dos dois modos. Era um terror, apavorante. O sangue naquela região quando me limpava no banheiro. A dor constantes no meu interior. O fedor de álcool.. até hoje não consigo beber nada, odeio bebida! Até tentei alguns goles para tirar a minha dor na alma mas.. não conseguia. Foram anos que deixaram cicatrizes dentro de mim de tal forma que entrei em depressão. Sentia nojo de mim, não conseguia me olhar no espelho. Vivia chorando, me colocando para baixo. Me sentindo um lixo por tudo que aconteceu. Complexos de inferioridade. Eu queria morrer!
Ele chegava quebrando tudo. 'Metendo o louco' em casa. Ele brigava lá fora, agredia a sua esposa, os filhos. Me agrediu a ponto de quebrar um dos ossos do meu maxilar na qual hoje eu não consigo comer direito.. na mastigação faz barulho, não consigo abrir a boca, tem seu limite. Ela por sua vez, sabia dos abusos e teve medo de denunciar. Teve filhos e.. quem cuidava era eu. A rotina era: levar eles na escola, limpar a casa, buscar eles na escola, trabalhar de tarde (quando tinha bico), chegar, tomar banho e ir para a escola. As vezes na madrugada, quem dava a mamadeira para a minha maninha, quem cuidava dando toda aquela atenção de mãe era eu. Quando não, ouvia a esposa do meu pai, a própria mãe batendo nela que era recém nascida. Só ouvia o choro daquela bebê em desespero. Saia correndo para tirar dos braços dela, pois ela queria 'dormir' do que ficar com a filha até pegar no sono. Era cada soco nas costas, pernas, me agoniava aquela bebê chorando sem fôlego em desespero. Então, por que fez filho????! Aquilo não era mãe, era um monstro!
Chegamos ao nível de passar fome. Pois as dívidas que ele tinha, virou uma bola gigantesca de neve. Tudo o que ele recebia, ele gastava em seus vícios. Até o carro ele vendeu. Lembro quando eu ainda era pequena, uns 12 anos.. ele me levou em um bar e um velho veio falar com ele onde estávamos sentados. Ele estava de camisa com alguns botões abertos e uma calça jeans. É nítido lembrar do seu perfume misturado com bebida, era etanol puro! Ele bateu nas costas do meu pai e disse 'e o meu dinheiro?'. O meu pai era o tipo de pessoa que manipulava todos de uma tal forma que até estando errado, faz com que ele esteja certo e a outra pessoa estivesse completamente errado perante a situação. Esse velho falando com ele, ficou me olhando e eu abaixava a cabeça com medo do seu olhar. Ele só veio até mim e disse "estou achando que vou te aceitar como forma de pagamento pela dívida do seu pai.. delícia!". Foi o terror ouvir aquilo! Algo que jamais esquecerei! Velho nojento!! Quando não, ele cantava aquela música do "seus cabelos é 'da hora' e seu corpão violão", olhando e me seduzindo. Nojento!! Nojento!!!
Morando de aluguel, com vários filhos deles, a sua esposa não trabalhava e não fazia nem questão. Eu fui a luta, pois só a pensão que eu recebia, não dava para nada. Vendia bala, doces, salgadinhos e água no semáforo para levantar dinheiro para comprar um pacote de macarrão, era uma garantia de almoço em casa. Trabalhando por um tempo fazendo bicos por aí, em restaurantes, academia.
A situação era tão drástica, que.. eu só comia uma vez no dia. Era a merenda da escola! As vezes até torcia para ser arroz com frango ou polenta, por mais que eu comia de tudo (ok, ovos mexidos também eram deliciosos).. levo para a minha vida nunca jogar comida fora e comer de tudo sem nojinho do tipo 'não como porque não gosto!'. Como estudava de noite no ensino médio, eu passava o dia todo sem comer. Deixava o meu almoço para os meus irmãos menores pois crianças.. eles tem fome e não esperam. Era um pacote de macarrão para a grande família. E.. além disso tinha que sobrar para a janta, pois na geladeira só tinham garrafas de águas.
Só que.. chegou um momento que, as coisas foram ficando piores. Eu dormia com uma faca embaixo do travesseiro, pois eu não queria que ele quando chegasse do trabalho na madrugada, viesse abusar dos meus irmãos do mesmo modo que ele fez comigo anos atrás. Eu dormia com um 'olho aberto e o outro fechado'!
Um dia, eu tentei contra a minha vida. Tinha pegado uma faca, a mesma que eu dormia por proteção e tinha colocado contra o meu peito, naquele pequeno banheiro de casa. Queria morrer e tirar essa dor que sentia. Mas.. sempre, sempre acontecia algo que me impedia. Eu travava, algo me dava paz.. algo dizia 'não faça isso' e eu não ia até o fim.. foi Deus! Foram noites chorando. Foram dias sobrevivendo.. a cada amanhecer. Com medo de tudo, dele principalmente com suas ameaças. Eu.. não tinha mais vida! Todas as noites eu olhava para o céu da janela de casa ou voltando da escola, olhava as estrelas e pensava se a minha mãe estivesse me olhando lá de cima. Pois a falta dela era muito dolorosa. O meu primeiro 'amor', a minha primeira menstruação, quando tirava boas notas na escola ou quando fazia uma boa comida e eu me orgulhava daquele arroz saindo soltinho e cheirando deliciosamente alho.
Eu.. prometi para mim mesmo amadurecer, ser alguém na vida. Fazer a diferença e dar orgulho para ela mesmo sabendo que não estava mais comigo.
Sonhava muito.. dormia viajando em pensamentos. Eu só queria ser feliz.. mas a cada dia me via no fundo do poço. Sem esperança para nada. Eu já tinha 'morrido' pois, só o corpo estava ali. Eu só queria uma luz no fim do túnel. Queria não depender dos meus pensamentos que me perturbavam todos os dias. Eu queria ter uma vida normal.. como muitos. Isso seria uma missão impossível já que os meus sonhos estavam se apagando a cada dia que passava. Eu sobrevivia. Somente isso.

A CADA AMANHECER - Sr LUKE HOWARD - Saga Homens Fortes - LiaWaleOnde histórias criam vida. Descubra agora