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MUITOS DIAS se destacam em nosso relacionamento, mas há um do qual sei que você deve se lembrar com muita clareza, e agora, ao olhar para trás, com uma dose de triste ironia.

Estávamos em sua casa de novo, aquele lugar aonde eu ia com cada vez mais frequência.

A casa era tranquila e isolada, e, quando eu estacionava o carro atrás daquele celeiro velho e destruído, ninguém tinha como saber que eu estava lá.

Assistíamos a um filme, Curtindo a Vida Adoidado, em parte porque eu não tinha visto, mas principalmente porque, com orgulho, você o declarou um produto dos anos 80.

— Não que eu tivesse idade para assistir ou apreciá-lo quando estreou, sabe? Mas mesmo assim — disse você ao pôr o DVD no aparelho.

— Vou deixar passar, já que levei o crédito pelo Nirvana e tudo. — Sorri enquanto

fechava as cortinas, bloqueando a luz que refletia na tela da TV.

— Isso mesmo. Estamos praticamente quites.

— Só que nunca nem ouvi falar desse filme, e todo mundo conhece o Nirvana —

comentei.

— Blasfêmia! — exclamou você quando o menu do DVD surgiu na tela. — Todo mundo conhece Ferris Bueller.

— Tudo bem, coroa — brinquei.

Você esboçou um pequeno sorriso.

— Ei. São só o quê, seis anos?

Minha boca ficou seca. Seis anos. Você achava que eu tinha dezenove.

Pela primeira vez você me perguntou daquela forma tão direta, e, quando fui confrontada com a ideia de que teria que mentir conscientemente, não consegui formar as palavras. Mentir por omissão era bem mais fácil.

Uma batida à porta atrás de mim me fez pular e me virar para olhar. Você não tinha olho mágico nem janelinha na porta, então estiquei a mão para a cortina por instinto, tentando espiar. Você apareceu a meu lado em um instante e segurou minha mão.

— Esconda-se — sussurrou.

Arregalei os olhos.

— O quê?

Você foi até a janela e deu uma puxadinha na cortina com um dedo, depois se virou para mim com o rosto pálido.

— É minha mãe. Esconda-se.

Meu queixo caiu, e por um segundo tive vontade de dizer não, ou por quê, mas então a ficha caiu completamente... quem eu era, quem você era, onde estávamos.

E eu soube que não tinha escolha.

— Onde? — perguntei.

— No quarto. — Você delicadamente segurou meu cotovelo e me levou até lá.

Sentei-me na cama, e ela rangeu de leve. Mudei de posição, e ela rangeu de novo.

— Merda. Você vai ter que entrar no closet.

Mesmo sabendo que fazia sentido, que era uma necessidade, que era a única forma deprotegê-lo, eu odiei.

Assenti enquanto você abria a porta do closet e outra batida soava na porta da frente.

— Só um segundo! — gritou você.

Entrei no pequeno espaço, desabei no chão e me recostei nos cobertores dobrados no canto.— Vou tentar despachá-la o mais rápido possível — disse você em voz baixa. — Só... não faça nenhum barulho, está bem?

Assenti e, quando a porta se fechou, não pude deixar de ficar feliz por haver uma luz ali, e logo depois constrangida por estar sentada naquele lugar, no fim das contas.

Ouvi a porta se abrir e sua voz.

— Oi, mãe, como vai?

Soava tão intensa, alegre... e forçada.

Não entendi bem a resposta dela, a voz estava baixa, distante. Pouco depois, pareceu que ela havia entrado, porque a ouvi com mais clareza. Os sapatos, de salto, pelo que imaginei, estalaram no chão. Então uma cadeira foi arrastada no piso, e eu soube que ela estava se sentando à mesa da cozinha.

Imaginei como ela era, essa artista que produzia beleza com tela e tinta. Perguntei-me se era morena como você, se tinha um dente torto e calorosos olhos azuis.

Uma segunda cadeira foi arrastada. Você se sentou à mesa com ela, e de onde estavam, fora da sala e do corredor, as vozes ficaram baixas.

Suspirei e olhei para o relógio. Então, cruzei os braços e me inclinei mais sobre os cobertores empilhados no chão atrás de mim, perguntando-me quanto tempo ela planejava ficar, já que vocês estavam sentados.

Eu teria de esperar ela ir embora.

A Verdade Sobre NósOnde histórias criam vida. Descubra agora