RECOMEÇANDO

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Fernanda Sanchez


Eu vi a morte de perto. Se esticasse a mão, poderia acariciar suas formas. Cheguei a até mesmo, a identificar suas cores: preto e branco.  De repente estava vivendo na tênue fronteira, entre a vida e a morte, envolta pela fragilidade, e os mistérios que essa condição abrange.
Ás vezes, me encontrava em uma escuridão assustadora. O silêncio era ensurdecedor. Em outros momentos, conseguia perceber minimamente o mundo ao meu redor. Pequenos sons, movimentos e sensações.  Me sentia em um limbo infinito.
Queria abrir os olhos e falar, mas alguma coisa me bloqueava, deixando-me inerte.

Não sei quanto tempo fiquei nessa situação, contudo, foi o suficiente para entender que mudanças aconteciam em mim. 
Em meio ao inexplicável, seguia tentando me agarrar a qualquer indício de sanidade. Algo que me elevasse a superfície novamente. Então, um dia, um sopro de vida encheu meu ser por completo, preenchendo-me de força. Abri lentamente os olhos, enxergando além de mim. Enfim, ultrapassava meu interior, libertando-me.

De início, foi difícil me localizar.  Demorou muito para eu entender onde estava, o que havia acontecido, qual era o meu estado, bem como, o que aconteceria dali para frente.

Não lembro quem foi a primeira pessoa que vi ao acordar. Mas, tudo que precisava saber, foi dito pelos meus pais e meu tio.

Meu corpo inteiro parecia dolorido, assim como minha cabeça.
Foi como se antes, eu estivesse protegida em uma bolha. Agora, ela tinha explodido, jogando-me a mercê de todo o impacto que o acidente havia proporcionado.

Minhas lembranças estavam voltando aos poucos.

A primeira que voltou a minha mente, foi da colisão que me trouxe até esse momento.
Um ônibus vinha em minha direção. A distância era razoável, não parecia ser um perigo.
Então .....

- Eu tentei frear o carro, mas não consegui. - Deixei o pensamento sair em voz alta.
Meu pai me encarou curioso.
- Como assim?
Uma fisgada forte, trouxe outra recordação.
Um restaurante, e um beijo entre minha mãe e Matheus.

- Eu estava meio perturbada, por isso dirigia devagar. Vi o caminhão se aproximar, com antecedência, mas não conseguia parar. Quando fui desviar, o volante travou.
Minha mãe adquiriu uma expressão séria.
- Tem certeza?
Apenas fiz que sim, com a cabeça, pois permanecia em um loop constante de acontecimentos.
- Tudo bem querida. - Acariciou meu rosto.
- Papai vai dar uma saída, mais volta logo - Disse, já saindo. Seguido pelo olhar atento de dona Lia.
- Onde ele foi? - Quis saber.
- Chamar seu tio, acredito. - Comentou, brevemente. - Mas, me diga. Porque estava dirigindo perturbada? - Meus olhos buscaram o dela.
Um nó se formou na minha garganta.
- Eu vi você e o Matheus se beijando no restaurante.
O Rosto da minha mãe empalideceu imediatamente.
Carinhosamente, pegou na minha mão.
- Sinto muito meu bem. - Lamentou - E sei que pode parecer clichê, mas não é nada do que está pensando.
Fiquei em silêncio, pois para falar a verdade, me sentia cansada.
- Querida, acredite em mim. O beijo não teve o significado que acha que teve. O Matheus irá te explicar tudo, na hora certa - Segurei sua mão.
- Já não me importa. - Sussurrei - Só quero que tudo fique bem.
Ela sorriu para mim.
- Tudo já está bem.

(...)

Meus movimentos estavam bem limitados. Minha fala seguia arrastada e baixa. Meu corpo pesava, e minha barriga estava diferente.

Entrava e saía muitas pessoas do meu quarto. Entre família, médicos e enfermeiros. Mas eu tinha a sensação que faltava algo, uma peça em todo esse quebra cabeça.

Quando direcionei meus olhos para a porta, senti imediatamente tudo se encaixar.
Matheus Molina me encarava fixamente. Ele parecia abatido, cansado, ao mesmo tempo que possuía um brilho especial. Ao se aproximar, cuidadosamente, um sorriso largo e sincero formou-se em seus lábios. 

- Demorou, Molina. - Falei, com dificuldade.
- Eu sei, - Acariciou meu rosto - Não sabe como foi difícil me segurar. - Confessou, com os olhos cheios de lágrimas.
- Soube que ... - Suspirei, ofegante - Soube que não saiu do meu lado. - Repeti, tomando fôlego.
- Sei que é complicado o que vou pedir, mas, tenta não falar muito. - Implicou, com a voz embargada.
Não consegui segurar o choro.
- Só dessa vez.
- Só dessa vez. - Prometeu, segurando minha mão.

Nossos olhos se encontram, e por um momento só existia a gente.

- Tenho muita coisa pra contar... - Começou falando, e em seguida, fez exatamente isso.
Matheus relatou que o beijo na minha mãe não foi uma recaída de amor, ou qualquer coisa parecida, mas sim, um encerramento de ciclo. Também detalhou as mudanças de pensamentos, convicções e planos que fez. Me sondou sobre os exames que tinha feito um tempo atrás, querendo saber se eu os havia visto. Quando neguei, sua postura mudou.

- Agora vem uma coisa importante, que precisa saber. - Entrelaçou nossos dedos.
Depois de uma pausa longa, continuou:
- Fernanda... Você está grávida.

Tudo em volta pareceu congelar.
Senti o quarto girar. De repente, as batidas do meu coração ficaram descompassadas, e o sangue fugiu do meu corpo.
Soltei a mão do Matheus, e a pousei na barriga, juntamente com a outra.
Um bebê nascia dentro de mim?
Seria isso possível ?

- Como? - Respirei fundo, afoita. -De quanto tempo?
- Você está de 3 meses. - Respondeu com firmeza. -  Ele foi concebido naquela vez em que transamos, depois da briga no estacionamento.  Puxando pela memória, me lembrei que foi a única vez, que não usamos camisinha.  E o tempo bate perfeitamente. - Explicou, cheio de convicção.
- É de risco? - Quis saber.
- Sim! A gestação é complicada, devido ao acidente.
Novamente, comecei a chorar.
Matheus voltou a segurar minha mão, e sorriu.
-  Você e o nosso bebê, vão ficar bem.
O encarei.
- Como sabe ... -Minha voz falhou - Como sabe, que é seu ?
Ele acariciou minha barriga com a mão livre.
- Você foi só minha, desde a primeira vez que tivemos relações. Assim, como eu.
Sua segurança, me fez aquecer por dentro.

Não poderia dizer, nem se quisesse, o que aconteceria amanhã, ou depois, mesmo porque meus planos foram totalmente alterados. Entretanto, não me sentia no direito de pedir, ou reclamar de nada. Depois de um acidente tão sério, estar viva já era o bastante. Claro que, saber que me tornaria mãe, assim, do nada, me deixou em pânico, e até desesperada, fazendo-me questionar mil coisas diferentes. Contudo, ter Matheus ao meu lado, tão seguro, confiante e feliz por fazer parte de tudo aquilo, me tranquilizava.

De fato, o conhecimento sobre o futuro não me pertencia.
Um instante foi o bastante para bagunçar o meu mundo.
Minhas certezas, convicções e perspectivas caíram sobre terra.
Mas de uma coisa, eu ainda sabia:
"A estrela nunca deixa de brilhar, e mesmo depois de morta, ajuda outras a surgirem."

O meu grande recomeço, só está começando.

O irmão do meu tioOnde histórias criam vida. Descubra agora