A longa e cansativa viagem de trem, por fim, seria recompensada. Gibril estava a caminho da Academia de Belas Artes de Euterpe após passar quatro anos em sua cidade natal. Terminou seus estudos ali com vinte anos e, agora, com vinte e quatro, fora convocado, coincidentemente, para esta cidade. Havia uma exposição de quatros ocorrendo e, como crítico de arte, Gibril precisava fazer resenhas e opiniões para artigos a respeito do evento. Ainda era antes da hora do almoço e a exposição seria somente mais para o fim da tarde, então, o poeta pensou em visitar a Academia e já havia combinado de almoçar com Manoel.
Andar pelas ruas pouco mudadas nesses últimos anos fez Gibril se sentir nostálgico. Ele se lembrava de como havia deixado de lado a vida de violinista profissional e continuava a exercer essa atividade somente por puro prazer e amor à música, sem pensar em nenhuma forma de remuneração com isso. Ademais, sua incrível (como diziam) sensibilidade com vocábulos o levou a focar nas linguagens, tornando-o um poeta conhecido nos municípios vizinhos da região, bem como um crítico consideravelmente renomado, além de ter diplomas para traduções em inglês, espanhol, alemão e italiano. Estava contente com a atual situação de sua carreira e, se o perguntassem há sete anos se ele deixaria Júpiter descansar por alguns dias da semana, ele, com certeza, responderia que não, mas, como hipocrisia, lá estava o violino pegando um pouco de terra e poeira no estojo no chão da casa de seus pais. A vida era realmente algo não planejado.
Isso o fez relembrar a estranha viagem que fizera com Yakov.
Yasha...
Desde aquele dia que retornaram para esse mundo, foi o último que Gibril, de fato, viu o amigo. Ele ainda recordava como se fosse ontem, embora não lembrasse mais de todos os detalhes sobre sua irmã dando-lhe um sermão e Tia Bel murmurando consigo o quão aliviada estava de vê-lo junto com Yakov. Entretanto, nítido como uma imagem vista com uma lupa, Gibril via seu antigo quarto na Academia vazio. Nenhum resquício que alguém esteve ali por quase uma década. Nem mesmo a cama embaixo da janela estava com o lençol amassado. Não havia nenhuma gota de tinta no quarto todo. E Gibril se sentiu tão vazio quanto aquele lugar. Yakov havia, quase que, literalmente, sumido. O poeta não o viu nunca mais naquele ano. Descobriu depois que o pintor fora obrigado pela família a dormir em sua casa pelo último um mês para terminar o ano letivo e que ele havia se formado posteriormente. Isso explicava porque nos dois anos que Gibril estudou lá, entre seus dezoito e vinte anos, não viu mais o amigo. Não pode nem ao menos dizer-lhe adeus. Então, para finalizar, Manoel havia fofocado que, como castigo por algum motivo que ele desconhecia (porém Gibril sabia muito bem o porquê), Yakov fora mandado para a Milão, na Itália, com, absolutamente, nada além de documentos. Sem mala, bagagens, dinheiro algum. Só o corpo e uns papéis importantes. Gibril não acreditou quando escutou isso - era impossível que os pais tenham-no deixado só com meia dúzia de documentos - contudo, Manoel tinha seu colega de quarto, Eduardo Cristino, como informante ciente no momento em que Yakov estava no navio rumo à Itália. Além disso, a família havia feito o maior escândalo no lugar para impedi-lo de levar um maço de réis no bolso. Dessa forma, só restava o poeta acreditar nas palavras de Manoel, por mais absurdas que parecessem.
Essa foi a última notícia que teve do amigo. Desde então, não sabia nem se ele estava vivo. No início do "desaparecimento" de Yakov, Gibril nunca pensou que iria sentir tantas saudades de alguém relativamente novo em sua vida. O quarto vazio sempre o trazia a lembrança da razão de estar assim e ninguém o ocupou nos anos que o poeta esteve lá. Uma constante recordação de que seu plano havia ido por água abaixo e que a pior consequência foi nunca mais ver seu companheiro de viagem.
Ele quase se arrependia de suas escolhas.
Entretanto, não teria tão boas memórias se não tivesse viajado entre quadros. Boa parte já havia evaporado de sua mente ocupada pela vida adulta com o passar dos anos. Não lembrava mais o nome de ninguém que conheceu lá, assim, não poderia chamar o tritão caso fosse à praia para haver em reencontro, como ele pedira. O poeta também perdeu a folha de seu mapa astral e nem ao menos recordava seu ascendente quando o perguntavam em ocasiões que esse assunto surgia. Todavia, a obsidiana e a pérola estavam sãs e salvas em sua casa em um porta-joia. Isso ele tinha guardado com sua vida.
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Belas Artes
Teen FictionGibril Diobsiana é um violinista e poeta que passa a estudar na Academia de Belas Artes de Euterpe, tendo como colega de quarto o prodígio na pintura e no desenho e melhor aluno do local, Yakov Mattisea. A vida desses estudantes artistas era agradá...