Quem era eu? Acho que apenas uma garota de recentes dezessete anos que morava com a pior das irmãs de minha mãe, em um apartamento semelhante a uma caixa de sapatos situado num bairro pobre do Rio de Janeiro. Minha vida parecia fascinante, não é mesmo? Acredite, não era.
Toda essa história trágica teve início com o acidente de meus pais, embora eu tente enganar a mim mesma quanto a isso. Era só mais uma páscoa, e eu- uma fedelha de dez anos- me entopia de chocolates como era de costume. Eles disseram que precisariam sair a negócios, e que eu ficaria bem com Maria, nossa empregada. Quando soube que o carro havia capotado e dado voltas e voltas e voltas... Meu coração se tornou uma rocha. Eu me fechei para o mundo. Um tempo depois, passei a morar com Stephane, a desnaturada da minha tia, e com seus filhos gêmeos, Pedro e Hugo, que eram iguaizinhos em tudo, até em suas maldades. Eles me abominavam, mas era recíproco, então estávamos kits.
Eu não achava que aniversários eram legais. Na verdade, era a data em que eu mais sofria- além de dia das mães e dos pais- pois não tinha meus pais para me aplaudir, me fazer um bolo, ou me observar apagar as velinhas emocionados. Os aniversários na casa de Stephane eram um pouco pior que os dias comuns, porque ela e seus filhinhos detestáveis afiavam suas garras e ficavam especialmente venenosos. Não que não fizessem isso normalmente; mas esse era meu presente de aniversário. E, infelizmente, este era o dia. O dia em que completei dezessete anos.
Desci as escadas estreitas apressada, ajeitando as alças da mochila e logo avistei Stephane sentada no sofá de costas para mim. Aquele cabelo seboso e preto estava preso em um coque, e seria preciso dois sofás para acomodar aquela bundona gorda. Como de praxe, fiz uma careta e lutei para desembaraçar os cabelos ondulados com os dedos. Estava atrasada e isso não era novidade. Costumava acordar bem mais cedo- às 4 hrs- para conseguir pegar os dois ônibus e chegar na escola pontualmente, às 7 hrs. Me adaptara bem a rotina... Até meu celular estragar, levando com ele o despertador. Implorei, supliquei, me ajoelhei, para que Stephane me desse um novo. No entanto, como já podia esperar, ela se recusou. Então eu precisava apostar na sorte.
Passei pela sala e cheguei à cozinha, onde meus dois primos incrivelmente magros se empanturravam de torta de maçã. Eles tinham aquele talento de comer muito e não engordar nada, ao contrário de sua mãe, que precisava de ajuda para passar na porta e não entalar. Ambos tinham cabelos pretos e cacheados, olhos escuros e uma barbicha tipo a que os bodes têm. Bem, esquecendo esse detalhe... Não os cumprimentei, pois sabia que de nada adiantaria. Peguei uma das maçãs empilhadas na fruteira e saí a mordiscando.
Sobre minha aparência... Suponho que estava montruosa. Passara bastante lápis de olho e rímel pretos, como sempre, e não tivera tempo de pentear os cabelos decentemente. Meu uniforme consistia em uma camisa branca de mangas, que eu arregaçava até os cotovelos, e botões, cujos três primeiros eu deixava desabotoados; uma saia vermelha pregueada que fugia completamente do meu estilo; e botas pretas de cano curto, até os tornozelos. Como o casaco era opcional, eu usava o meu único, que era preto e masculino, grande demais para mim. Seria obvio dizer que o casaco pertencera à um dos gêmeos.
Encarei a ventania que alvoroçou ainda mais o meu cabelo e levantou minha saia.
Ótimo, pensei. Era disso que eu estava precisando: uma saia voadora e cabelo em pé! Meu aniversário está maravilhoso.
Mas, ainda com toda o vento quente, os carros buzinantes e tudo indicando que meu dia seria péssimo, eu segui para o ponto. Sentei-me no banquinho enferrujado, ao lado de uma senhora e de um cara muito, muito maior do que eu. Por ainda ser muito cedo, fazia um friozinho gostoso, do qual eu me protegia com meu casacão. Afaguei o braço, encarando a rua asfaltada e, ainda assim, cheia de buracos. Os carros passavam para cá e para lá numa velocidade surpreendente, mas não havia muitos; a essa hora da manhã, muita gente ainda dormia, e outros, azarados como eu, deveriam acordar com as galinhas para cumprir com seus compromissos. Olhei para as casinhas e os hotéis. Para a cantina onde eu costumava comprar doces, e para a livraria que eu adorava visitar. Daí via-se um beco, uma outra rua, e logo continuaria os muitos lugares onde minha infância foi construída. Lembrava-me bem do dia em que vim para cá. Legalmente, Stephane era quem deveria ficar comigo e, acredite, isso não me animou. Quando soube que viria, quase entrei em desespero, lembrando-me de todas as vezes que Hugo e Pedro haviam pregado peças feias em mim. Como da vez em que me obrigaram a comer formigas. Ou que colocaram uma fita de papel higiênico presa a um pregador nas minhas calças, simulando um rabinho, e depois me deram uns trocados para que fosse comprar doces na cantina. Estar com eles dois era esperar de tudo. Viver sempre de olhos bem abertos. E eles só deram uma trégua nas brincadeirinhas após meus quinze anos, e só porque não tinha mais graça, e porque eles já tinham dezoito anos e se achavam homens.
Suspirei, balançando os pés e estreitando os olhos, que ardiam com o vento. Inclinei-me para ver se o ônibus já vinha, e espiei o relógio, que marcava as 5hrs e 25min, pontualmente. Balancei a cabeça, me dando conta de que já perdera o primeiro tempo de aula, e que essa era a terceira vez que isso acontecia consecutivamente. Levaria uma advertência e, com sorte, seria suspensa.
Quase vinte minutos depois, o bendito ônibus apareceu e, durante essa viagem, recostei a cabeça no vidro da janela e me lembrei da segunda pior coisa que já me aconteceu...
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Apaixonada por um idiota
Random"Ele era tudo o que eu não suportava; tinha todos os defeitos do mundo. Então por que o amava tanto?" Luciana Mendes, uma adolescente problemática, achava que já tinha problemas demais em sua vida e que não precisava de mais um. Se apaixonar era tud...