Noite (In)feliz

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— Mãe, eu... — Harumi Kin hesitou por alguns segundos e continuou decidida: — eu quero te pedir o meu último presente de Natal!

— Kinny, pare já de falar bobagens! — Fumiko Nakamura caminhou rapidamente, tentando esconder o nervosismo, em direção à porta do quarto particular daquele hospital, odiava o tom mórbido da filha. Não queria olhá-la para não chorar com a ideia de não a ver nunca mais com suas manias e seu sorriso. — Vou pegar um café e você fica aí, pensando no que fará futuramente. Sabe que eu te amo, certo? Já volto, pequena!

— Eu também te amo, mãe. Mas hoje é véspera de Natal e eu queria algo simples, mesmo não podendo. Aproveita que vai para a cafeteria e... Bom, eu juro, eu acho que... Ok, você já saiu... Que droga! Trinta anos na cara e dando trabalho para a mamãe.

Kin abaixou o queixo tentando disfarçar de si a lágrima que se formou em cada olho, mas teve certa dificuldade nesse simples movimento e só pôde observá-las rolarem pelo rosto como fios de nylon. Talvez ela só quisesse que a mãe olhasse para ela e visse como estava definhando e morrendo, já que Kin acreditava que não passaria daquela noite. Entretanto, a nissei também não queria dar mais tanta preocupação como já havia dado desde o primeiro diagnóstico de um câncer raro no estômago, já na fase quatro, e problemas cardíacos genéticos. Então, ela olhou para o meio do peito e soube que os pontos estavam rejeitando a quarta cirurgia no mesmo lugar. Algo deu errado, pensou. Ela sabia que estava morrendo e por dentro explodia de raiva, já que era nova demais e viveu os últimos sete anos, ou mais, no seu quarto entre desenhos e na frente de um computador, criando e cuidando da sua imagem nas redes sociais, já que era uma influencer e quase não respirava ar puro ou viajava e nem fazia amizades e sequer namorou nesse tempo de internet. Vim para o mundo com um corpo defeituoso e precisei abrir o peito para consertar o coração algumas vezes, reclamava baixinho, além de ter câncer terminal. Minha vida mudou completamente de um ano para cá e eu não acredito que vou morrer virgem!, exclamou alto.

Agora a camisola ganhava um tom avermelhado em ondas rasas, os remédios deveriam estar fazendo efeito porque somente ardia um pouco no local dos pontos e Kinny sabia que não era o ardor da ansiedade, mas a dor física. Ela não conseguia se mexer e não queria assustar mais a mãe e, por isso, não chamou ninguém para seu auxílio. Kin já não tinha mais jeito, era o que pensava. Que morresse sozinha naquele túmulo de fios e barulhos de bips distintos e claridade morna, como uma cripta. Talvez estivesse se afogando no próprio sangue, porque sufocava e vomitava o líquido vermelho e o ar não voltava para os pulmões. Isso tudo a assustava mais do que a ideia da morte. Ótimo, pensou desesperada, eu não pedi o último presente de Natal e agora morro mesmo. Que vida besta e injusta!

Kin, em meio à angústia e ao sofrimento, ainda conseguiu reparar que os aparelhos não fizeram alarde algum e não anunciaram a sua partida prematura, quando seus batimentos cardíacos começaram a oscilar. Mesmo com medo, ela continuou decida a não chamar ninguém, desejava acabar de uma vez e virar uma estrelinha, só que o processo se arrastava e era dolorido demais. Estava cansada há meses. Muito cansada. O corpo estava debilitado e com olheiras profundas, a sua leveza era de assustar. Porém seus negros cabelos finos batendo nos ombros eram tão cheios e longos quanto outrora. Kin tentou focar no que mais gostava quando mais nova, que era tocar violino e desenhar, mas quem pensa nessas coisas ao morrer? Tentou lembrar de alguma música que tocava nas tardes depois da escola, quando tinha força e era uma bailarina exemplar. Entretanto, os seus olhos estavam percorrendo aquele lugar impessoal que, provavelmente, muitas pessoas já haviam morrido e era naquela situação que não conseguia parar de pensar. Ela jurou ter visto as cortinas da janela se mexerem, mas não ventava e a própria vidraça estava fechada. Aquela redoma estava sempre fechada e nem as almas poderiam sair daquele lugar horroroso, apesar de parecer mais um quarto de hotel em tons pastéis.

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