– DIA 3.231 – 1/2 –
Nigreos sobe no meu peito no primeiro raio de sol da manhã e começa a cheirar meu rosto, me fazendo cócegas com seus bigodes. Se eu estivesse dormindo teria ficado irritado por ele me acordar, mas como estou apenas deitado de olhos fechados, acabo rindo do bichano e coço atrás da sua orelha.
Sento-me no banco de traz do carro que passei a noite, esfrego meus olhos e solto um longo bocejo. Olho pelas janelas empoeiradas para me certificar de que nenhum morto ou vivo está por perto, então abro a porta para o gato sair e ele pula para fora.
Passei pouco mais de nove horas durante a noite aqui dentro para me proteger do mundo externo e dormir. Mas se eu caí no sono por mais de duas horas, foi muito.
Antes da morte de Augusto eu já vinha tendo dificuldade para dormir, mas depois que ele se foi, me auto-diagnostiquei com insônia. Não importa se eu estou na minha confortável cama na cabana, ou encolhido dentro de um carro como agora, durmo uma média de duas a três horas por noite e às vezes nem isso.
Pego a mochila e como as duas últimas salsichas da lata como café da manhã e alguns goles d'água. Saio do carro e estico as costas, abro a braguilha da calça e urino no pneu do veículo, esvaziando a bexiga.
Vejo Nigreos reaparecer a certa distância assim que abotoo a calça carregando um passarinho morto na boca, se deita no chão e começa a comer o seu próprio café da manhã. Ele foi rápido em sua caçada, não demorou nem dez minutos desde que saiu do carro.
Sento-me no banco traseiro do carro virado para fora, com os pés a centímetros do chão. Começo a mexer em uma pele morta que se solta do meu braço por causa das minhas queimaduras.
Há três dias encontrei um boné vermelho desbotado pelo sol e corroído nas pontas, mas ele não é suficiente para me proteger do sol. E até agora não encontrei nenhum carro com combustível, quanto mais funcionando. No segundo dia de viagem encontrei um garrafão para caso eu encontre gasolina e ir tentando encontrar um carro que funcione, mas cinco dias depois, após verificar o quinquagésimo veículo, joguei o garrafão longe, desferindo uma onda de palavrões.
Consigo tirar um pedaço bem grande de pele morta da orelha quase do tamanho do meu polegar. Jogo a pele no chão com uma careta e ouço o som de um motor ao longe.
Olho para a direção a qual venho viajando e vejo uma minivan vermelha rodando pelo asfalto. Temendo ser visto indo para o meio do mato, me abaixo ao lado do carro e rastejo até debaixo dele. Levo a mão ao coldre e vejo a minivan passar por mim em uma velocidade mediana, mas não para, para meu alívio.
Assim que o veículo some da minha audição e visão, saio do meu esconderijo, batendo na camisa e bermuda afastando a terra do corpo. Acabo rindo quando vejo Nigreos sair do meio de arbustos ainda com uma pena na boca olhando para os lados de forma atenta.
Espero quinze minutos para ver se mais algum carro irá passar, mas como nada acontece ponho a mochila nas costas, pego a bicicleta escondida no mato, coloco o gato no cesto, a toalha sobre o bicho para protegê-lo do sol e começo a pedalar.
Não demora muito para começar a pingar suor e molhar a camiseta. Já faz quase um mês que não cai uma única gota do céu e por isso não me surpreendo que queimadas estejam acontecendo, como a da cabana. O céu está azul, sem nenhuma nuvem no alto e o sol da manhã brilha a cada minuto mais forte e cruel.
Não me importaria nem um pouco de que chovesse um pouco, mesmo uma tempestade arrasadora seria bem vinda. Só de pensar em me ver levando um dilúvio na cabeça já me faz ficar animado, dando sorrisos bobos sem motivos.
– Essas nuvens negras, que se aproximam. – cantarolo como uma forma de afastar o calor e talvez de atrair a chuva. – Denunciam claramente... que vai chover. São bem vindas, para mim... que estou atento. Pra você que também sabe por que vai chover. É uma chuva diferente como aquela que teu pai contou. Uma vez... no livro proibido e que tava escondido, todo mundo vai saber. É uma chuva esperada essa. Abençoada uma chuva dessa. É uma chuva bem pesada, essa... que começa a cair. Que começa a cair. Que começa a cair.
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Yorick: Introdução
Science FictionYorick passou os últimos 8 anos vivendo sozinho em uma cabana isolada em meio a mata, sobrevivendo com pequenas criações de animais e com aquilo que planta em sua horta. O único ser vivo com quem ele conversou nesse tempo todo foi com o seu melhor e...