14. Loja

6 2 0
                                    

– DIA 3.258 –

No dia seguinte em que acordei com consciência da amputação, nos mudamos eu, Benjamin e Nigreos para a casa azul com a tinta descascada do outro lado da rua. Ficamos lá por cinco dias, até decidirmos nos distanciar mais da Escola, mas caminhamos apenas três horas no primeiro dia e procuramos um lugar para ficar.

O plano para hoje é o mesmo tempo de caminhada que ontem, para que eu não fique muito cansado e assim me recupere mais rápido, pois ainda sinto o corpo com certa dormência, o coto ainda dói bastante e a facada no peito com minha adaga também incomoda, mesmo Benjamin tendo tirado meus pontos ontem.

– Ainda não me acostumei com a ideia de que a parte amputada se chama coto ou cotoco. – comento enquanto caminhamos em meio à rua. – Parece uma piada ou deboche com o deficiente. E eu nem acredito que agora sou considerado um deficiente físico.

– Agora você pode estacionar em vagas para deficientes. – Benjamin brinca. – E sentar nas vagas para deficientes, grávidas e idosos dos ônibus. Vocês deficientes também têm preferência em filas, não?

– Não faço a menor ideia e não sei se eu teria preferência por não ter trinta e cinco por cento do braço esquerdo. Mas vou procurar saber.

– Faça isso. Direitos devem ser usados e abusados.

Sinto uma gota de água atingir minha bochecha com a cicatriz e olho para as nuvens escuras acima de nós. Olho no relógio que Augusto me deu e que Benjamin resgatou do meu pulso, que a essa altura deve estar podre, e me devolveu e o pôs no meu pulso direito. Agora são dez horas e quinze minutos da manhã e pretendemos caminhar mais uma hora, mas quando sinto uma segunda gota cair no rosto, olho para Benjamin.

– Vai chover. É melhor procurar um abrigo.

– Que tal aquela loja? – ele aponta para uma que acabamos de passar. – Nós precisamos de roupas novas. Ou melhor, você precisa de calças novas.

Olho para baixo e vejo a calça moletom preta e cordinhas brancas que Benjamin me emprestou logo depois de perceber minha dificuldade para abrir a braguilha, mas essa é a única calça que temos sem zíper, fora os calções. E como depois da chuva que caiu a partir da noite que fugimos da Escola a temperatura diminuiu consideravelmente, calções não são a vestimenta mais adequada agora, que faz cerca de quinze graus. Não considero isso muito frio, mas é um belo contraste com o que vimos enfrentando.

– Pode ser. – concordo sentindo vários outros pingos.

Entramos na loja de roupas que parece estar incrivelmente bem conservada, apesar da grossa camada de pó sobre todo o lugar e algumas peças de roupa jogadas no chão. Até mesmo as portas de vidro e a vidraça da vitrine estão intactas, embora quase sem transparência pela sujeira do tempo.

Assim que entramos, Vazio veio até nós. Pelo seu estado eu diria que já faz anos que ela foi transformada. Seu cabelo é da cor de palha, provavelmente pela constante exposição ao Sol, o casaco moletom desbotado que usa está sujo e com vários rasgos e a saia longa está em um estado lastimável. A moda dos mortos não é muito elegante.

Benjamin puxa minha adaga da bainha, que agora está em sua cintura, e vai até a morta. Ele fica com medo dos braços esticados da coisa, mas consegue perfurar o globo ocular dela, que cai ao chão.

– Você está melhor. – comento sorrindo.

– Obrigado. Mas ainda tenho medo dos dedos deles.

– Com o tempo você se acostuma. Eles dão mais atenção para as bocas do que para as mãos. É como se eles não soubessem o poder e força que possuem nos dedos.

Yorick: IntroduçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora