16. Banho

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– DIA 3.270 –

– Não aguento nem ouvir a voz dela! – falo sentando ao lado de Benjamin em cima de uma árvore que caiu pelo vento ou algo assim. – É ela abrir a boca que já tenho vontade de... não sei... estrangular ela. É insuportável!

– É só não prestar atenção nela. – responde ele retirando sua mochila das costas e eu faço o mesmo. – Eu particularmente gosto. Mantém minha mente ocupada.

– Pois é esse o problema. Minha cabeça fica tão ocupada e cheia que fico tonto. Meu cérebro está dormente!

– Você teve cinco anos tendo como companhia um gato. É natural estranhar tanto contato humano.

– Contato humano é uma coisa. Fazer o ouvido dos outros de penico é outra, bem diferente. E nós nem conseguimos conversar direito. Ela te monopolizou completamente.

– Você gosta de palavras compridas, não é? – ele sorri e eu dou de ombros. – E você precisa entender que eu não sou seu e que eu tenho o direito de conversar com outras pessoas. O que pensou? Que agora só teríamos um ao outro?

– Sei que não sou seu dono, mas sim. Eu pensei que seríamos apenas nós dois no mundo. Os dois últimos homens do mundo. Qual o problema nisso? – ele ri, o que me faz bufar de indignação.

Esses quatro últimos dias foram longos com as caminhadas e com a tagarelice de Verônica. Eu gosto de caminhar, de sentir o impacto do solo na sola dos meus pés calçados, da dor nos músculos das pernas depois de horas ininterruptas e da constante mudança de paisagem ao redor. Ver os pássaros voando, os animais correndo, as diferentes árvores e as esporádicas casas.

Mas caminhar com a voz de Verônica martelando nos tímpanos é tortura. Quero ouvir o som das árvores se agitando com a brisa, o canto dos pássaros e a voz de Benjamin que a cada dia que passa se torna mais bela aos meus ouvidos. Mas tudo isso acaba sendo abafado pela matraca da mulher.

Agora estamos na sombra se uma árvore à beira da estrada fazendo hora para o pico do Sol do meio dia passar. Verônica desapareceu em meio à floresta com o intuito de mais uma vez utilizar uma moita como banheiro, mas avisou que poderia demorar a reaparecer. "Coisa de mulher", ela disse.

Vejo um Vazio vindo em nossa direção pelo asfalto, abrindo e fechando a boca e erguendo a única mão para frente. Percebo que ele perdeu um dos braços na altura do cotovelo em algum momento, mas o sangue coagulado das suas veias não corre mais pela ferida aberta.

– Ele parece você. – provoca Benjamin. – Vocês possuem a mesma deficiência.

– Mas ao contrário dele, eu posso socar sua cara.

Ele ri mais uma vez e se levanta, tirando a adaga da bainha. Mas eu me levanto também e estendo a mão para que ele me entregue a adaga.

Desde que perdi o braço venho evitando matar Vazios. No início era pela fraqueza e dores pelo corpo, além de ensinar Benjamin a lidar com eles, mas nos últimos dias é pela mais pura covardia. Não me garanto mais contra essas coisas sem o auxílio de uma mão. Mas meu coto vai passar o resto da vida sendo um coto, ele nunca irá se regenerar. E quanto antes eu me adaptar a minha nova realidade, melhor.

Benjamin exitou em me entregar a adaga, insisto flexionando os dedos para que ele me entregue o objeto e assim ele o faz. Sinto o peso e a forma da adaga que me é tão familiar. A adaga cuja lâmina gerou a cicatriz em meu rosto e a do meu peito que atravessou até as costas, próxima à axila esquerda.

Vou até a criatura que se aproxima e invisto contra ele. Antes eu costumava usar a mão esquerda para segurar e afastar as mãos deles. Por isso aviso a mim mesmo que meu braço esquerdo está mais curto que o de costume e não possui uma mão com dedos.

Yorick: IntroduçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora