1. Fuga

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– DIA 3.224 –

O suor escorre em abundância do meu couro cabeludo, desce pelo pescoço e entra na gola da minha camiseta. Hoje é um dia quente e abafado, até arrisco dizer que é o dia mais quente desse verão. Não tenho um termômetro para medir a temperatura, mas acredito que esteja acima dos 40°C.

Tento resistir a vontade de tirar a roupa e ficar completamente pelado para tentar diminuir o máximo possível a temperatura no meu corpo, mas resisto à tentação de fazer isso e me mantenho usando minha camiseta de algodão branca, um curto calção e chinelos de dedos.

Há anos atrás, logo que me vi sozinho na cabana, não liguei mais com o que eu vestia, o que significa que no verão não era raro de me ver passando dias sem usar uma única peça de roupa.

Mas certa vez me peguei brincando com Nigreos, correndo atrás do gato, andando no chão como um animal. Então um medo repentino me atingiu: de perder a humanidade e virar um selvagem completo. Por isso passei a me vestir como uma pessoa comum, não importando a temperatura do ambiente. Também voltei a respeitar horários de refeição, como café da manhã, almoço e jantar.

Passei também a organizar a cabana, não deixando a louça acumular na pia, varrer pelo menos duas vezes na semana e fazer uma faxina completa no mínimo uma vez ao mês. Essas coisas, que podem parecer chatas e desestimulantes, ajudam a fazer as coisas terem um ar de naturalidade no meio em que vivo. Ajuda a manter uma saúde mental equilibrada e com isso a humanidade. É o que me diferencia do gato.

E é justamente isso que estou fazendo agora: faxina. Estou ajoelhado em frente à lareira retirando o excesso de cinzas com uma pá de jardim e pondo o conteúdo em uma bacia de plástico.

Em outros tempos eu teria me assustado com uma coisa preta, entrado pela porta da frente correndo, mas quando se vive com um gato você se acostuma com esse tipo de coisa.

Nigreos se tornou um gato grande, com a pelagem completamente preta e com grandes olhos verdes. Ele é extremamente independente, então não é incomum ele desaparecer por dias, mas sempre acaba retornando. Nesse momento, por exemplo, passou cinco ou seis dias desaparecido, mas não me surpreendo com seu retorno e a muito tempo não me dou ao trabalho de me preocupar com o sumiço dele.

Mas dessa vez reparei que tem algo de estranho acontecendo pelo seu comportamento incomum. Geralmente quando ele retorna, Nigreos vem até mim receber uma dose de carinho e se esfrega ronronando em mim. Mas dessa vez ele vem até mim me olhando com os olhos arregalados e miando alto em sinal de alerta.

Geralmente quando ele mia desse jeito é sinal de fome e de fato quando ele chega das suas saídas está faminto. Às vezes desconfio que a única coisa que o faz voltar para casa é pela comida. Mas geralmente ele só mia adoidadamente dessa forma depois de receber as suas boas vindas e só então pede comida.

Estranhando essa sua falta de cortesia, levanto secando o suor da testa com o antebraço e vou até ele, faço um cafuné rápido na sua cabeça e saio pela porta para tentar ver algo fora do lugar.

Em todos esses oito anos que vivo por aqui, nem um único ser humano vivo apareceu além de mim e Augusto. Dois mortos chegaram aqui em tempos diferentes, mas não tive trabalho em cuidar deles. Ser surpreendido por apenas dois Vazios em oito anos é um saldo bastante satisfatório. Esse isolamento era exatamente o que Augusto imaginava, sendo um lugar seguro de tudo e de todos.

Mas nunca pensei que o verdadeiro perigo desse lugar fosse algo além das consequências do apocalipse. Ao longe, acima da copa das árvores que circundam a clareira, vejo uma abundante fumaça negra subindo para o céu ensolarado. Como as pessoas diziam: onde há fumaça, há fogo.

Yorick: IntroduçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora