– DIA 3.266 –
A manhã nasce fria e com uma densa neblina cobrindo todos os cantos da rua. Nigreos sobe no meu colo como sempre faz quando o dia surge, eu olho para fora e me certifico que nenhum Vazio está por perto e abro a porta do carro para que ele vá fazer suas necessidades e cassar seu café da manhã. Fecho a porta novamente tomando cuidado para não fazer barulho e acompanho o gato se perder por entre o capim alto da beira da estrada.
Ajusto o retrovisor interno e vejo Benjamin dormindo deitado no banco de traz do carro, com os joelhos dobrados para caber no pouco espaço, braços cruzados, boca entreaberta e cabeça apoiada em uma pequena pilha de roupas suas que usa como travesseiro. Ele veste sua jaqueta de couro preta com o zíper fechado, calça jeans azul e meias pretas nos pés sem sapato.
Bocejo e coço os olhos irritados pelo sono que muito pouco deu as caras nessa noite. Tenho que admitir que tive a vã esperança de conseguir ter noites longas de sono agora que tenho uma boa companhia humana, mas isso não aconteceu. Logo após minha amputação passei alguns dias dormindo por horas a fio em decorrência da exaustão e principalmente pela perda de sangue, mas agora que me sinto muito melhor, a insônia voltou a se fazer presente.
Abro o porta-luvas na minha frente apenas para passar o tempo. Pego uma carteira de couro que ali está e começo a bisbilhotar nela. Encontro um cartão de banco, um cartão de crédito, carteira de identidade, CPF, um cartão para desconto de uma loja de roupas e outro de uma farmácia, carteira de motorista, uma fotografia, uma nota de cinquenta reais, duas de vinte e uma de cinco. Os documentos estão em nome de Eduardo da Costa Martins, se estiver vivo agora ele tem trinta e dois anos, é filho de Carlos Vasconcelos Martins e Rosangela Fonseca da Costa. Na fotografia que parece já ter sido bastante manuseada, tem a imagem de uma mulher que deve ter minha idade, com cabelos ruivos e lisos, sardas no alto das bochechas e nariz, rosto em forma de coração, um largo e bonito sorriso nos lábios, olhos verdes, uma correntinha no pescoço, veste uma camiseta violeta, ao fundo tem algumas árvores com folhas verdes. Ponho a foto de volta na carteira e a devolvo para o porta-luvas me perguntando o que deve ter acontecido com Eduardo, seus pais e a garota bonita da foto.
Olho novamente pelo retrovisor e vejo que Benjamin ainda está em seu sono profundo. Embora eu fique impaciente para que ele acorde para que possamos interagir e começarmos a caminhar novamente, eu sei o quão valioso é dormir, então não ouso o interromper.
Abro a porta do carro e saio. Estico minha coluna, coço a nuca, bocejo e caminho alguns metros pela beira do asfalto. Olho as árvores que margeiam a estrada, onde a suave brisa da manhã agita as folhas.
Nós três caminhamos para nos afastar da Escola, mas logo percebi que estávamos retornando pelo caminho que me levou até ali. Se continuarmos nessa direção, nós iremos cruzar pelo caminho que leva até a cabana e chegar à cidade onde tive contato todos esses últimos. Mas mesmo depois de me dar conta disso, seguimos em frente. Se depois do incêndio que me expulsou da cabana eu quis enfrentar o desconhecido, agora quero voltar para o mais próximo de um lar que tive em muito tempo. A cabana provavelmente não existe mais, mas podemos nos hospedar por um tempo na cidade que conheço como a palma da minha mão.
Urino no acostamento do asfalto, o que é uma tarefa bem mais simples do que se estivesse usando jeans. De bexiga vazia, caminho de volta até o carro, pego minha mochila, abro o zíper com cuidado para não fazer barulho, pego o estojo onde guardo minha escova de dente e a pasta e também uma garrafa com água.
Atravesso a estrada e faço minha higiene bucal no acostamento. Apoio a garrafa com água no coto para lavar a mão, mas mal molho ela, mas a garrafa escorrega e cai ao chão, molhando minha calça e meus pés descalços. Me abaixo rapidamente e deixo a garrafa quase vazia em pé, antes que ela se esvazie completamente. Amaldiçoo os desuses ao perceber que ficou parecendo que eu não tive o trabalho de tirar o Grandioso Yorick para fora na hora de urinar. Começo a passar a mão na parte úmida na esperança de secar o molhado da calça, mas é em vão.
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Yorick: Introdução
Science FictionYorick passou os últimos 8 anos vivendo sozinho em uma cabana isolada em meio a mata, sobrevivendo com pequenas criações de animais e com aquilo que planta em sua horta. O único ser vivo com quem ele conversou nesse tempo todo foi com o seu melhor e...