"Em um prédio escuro
No meio de uma cidade caótica
Havia uma menina morta
De corpo e alma."
Mesmo com todos os jornais de Londres publicando teorias a respeito dos motivos pelos quais Sofia Spilman despencara do 7° andar do prédio em que morava, a dúvida para os mais exigentes e céticos sempre permaneceu intacta. Todas as especulações com base em um coração partido e os palpites sobre um possível problema com bebidas pouco convenceram quem preferia uma fonte confiável à palavra sem precedentes de um jornal qualquer, e, por isso, talvez, os editores e repórteres continuavam trazendo novas hipóteses a cada dia: queriam provar a todos que sabiam de tudo.
Claro que depois de todas aquelas teorias a notícia verdadeira veio, também, através de um jornal, e ironicamente foi pelo mesmo editor que publicou aquelas outras falsas certezas a respeito de Sofia Spilman. A diferença era que, agora, havia na manchete da primeira página o nome de Harry White, detetive prodígio da Scotland Yard e um dos principais destaques da equipe responsável pela maior parte dos casos que chegavam à divisão de Homicídios da polícia Londrina.
Mas essa única notícia verdadeira veio anos depois do início do caso.
Até ali, nada nunca foi certo e, pensando bem, continuou não sendo tão certo assim mesmo depois de tudo. O assassinato era uma certeza que não se igualava às outras condições do caso. Havia muita coisa mal explicada — daquelas que deixariam os céticos irritados e sedentos por fatos — e essas coisas nem mesmo Harry White poderia averiguar.
O Caso Spilman sempre foi um caos iminente.
Dois anos antes do quase fim daquele caos, quando Harry chegou à cena do crime e teve o primeiro contato com o mistério sobre a morte de Sofia Spilman, usava um daqueles jornais com anúncios mentirosos para proteger da chuva a cabeça e o cigarro que tinha preso entre os lábios. Aquele exemplar, especificamente, falava sobre uma gravidez indesejada na família real, indicando que um bastardo chegaria ao palácio em breve, e apesar de ser um assunto sério White havia rido dele mais cedo, quando tomava café em sua pequena casa no cruzamento entre a 7 Jelf Road e a Talma Toad, em Brixton. Agora, porém, o falso bebê real parecia tão insignificante quanto o anúncio da melhor pasta de dente britânica estampado atrás da notícia.
Harry abriu caminho por entre os curiosos, e a baderna era tanta que não se surpreendeu ao encontrar senhoras ainda vestindo hobbies e camisolas. Jogou o cigarro meio aceso no asfalto e o amassou com a sola de seu sapato. A noite era fria, agitada e sufocante, fazendo todas as luzes e sirenes das viaturas parecerem tapas contra o seu rosto. Típico de uma cena de crime.
Quando criança, Harry queria ser um piloto de corrida, ou um Power Ranger. Agora tinha a sensação de que era um pouco dos dois. Todas as vezes que pensava sobre a sua vida na polícia, quando enfrentava jornais, assassinos, mistérios e, às vezes, pessoas malucas de verdade, se sentia como um super-herói sem capa. A diferença era que, ao invés de superpoderes, ele tinha uma garrafa de uísque, um jornal-guarda-chuva e um maço de cigarros daqueles que só ele gostava de fumar para usar na hora de salvar a cidade.
— O que temos aqui? — perguntou o detetive ao rapaz de uniforme amarelo parado próximo à faixa.
Do lado de fora do perímetro White viu a pequena mão de Sofia escapando do saco preto que haviam colocado sobre o seu corpo. Ele pensou que, aparentemente, a única coisa que se importavam em esconder era a cabeça estourada pelo impacto, e sentiu uma sensação estranha com aquilo.
— Possível suicídio — disse o rapaz enquanto lia um papel sobre uma prancheta — Mulher, dezoito anos, branca, ruiva e solteira.
Harry, já sem paciência, trocou o relatório nas mãos do rapaz pelo seu jornal de notícias falsas e passou pela faixa. Não era aquilo o que ele queria saber. Ninguém estava interessado no estado civil da garota, ou se ela era branca ou não.
Odiava perder tempo com coisas inúteis.
Aproximou-se do corpo, ignorando o seu nome sendo chamado pelo chefe, e abaixou ao lado da poça de sangue que varria o asfalto. Seu sobretudo teve a ponta manchada de vermelho e o cheiro do corpo da garota incomodou as suas narinas, mas ele não se moveu. Puxou o saco negro que a cobria e prendeu a respiração quando o rosto pálido de Sofia apareceu em seu campo de visão. As pessoas que circulavam a fita amarela emitiram sons de espanto, nojo e reprovação pela cena que viram. Harry se esqueceu delas e continuou observando a vítima. Os olhos estavam abertos, vermelhos de sangue, e seu crânio devastadoramente amassado pela queda.
Teriam de fechar o caixão no velório, ele pensou.
— Harry, o que está fazendo?
White levantou o rosto para Enzo West, seu chefe, que corria em sua direção.
— Estou olhando. — respondeu.
West respirou fundo.
— Constance Spilman está bem ali. — disse, olhando para a sempre reconhecível matriarca da família, que estava parada atrás da faixa amarela separando a cena do crime dos civis.— Espere até montarmos a tenda.
Harry logo entendeu que, provavelmente, ver a filha com o crânio esmagado não era muito agradável, mas não pôde deixar de contestar.
— Então tire-a daqui. Preciso fazer o meu trabalho.
West bufou, impaciente, e voltou para a ponta da faixa amarela. Harry observou enquanto ele dizia algo para os policiais e sorriu quando viu o homem se movimentando, mandando todos os cidadãos parados nas extremidades das faixas irem para suas devidas casas. Então ele deixou o restante da organização para os outros policiais e foi conversar com a mãe de Sofia, que nunca parava de chorar, e a mulher logo foi posta dentro de uma ambulância.
— Espero que valha a pena.— comentou West, já de volta ao lado de Harry.— Aquela mulher te odeia.
— É, eu sei. Denegri a imagem de sua filha morta. Mas veja só a ironia: As fotos dela estarão na internet amanhã pela manhã e isso não fará mais diferença.— e, antes que pudesse levar uma bronca pelas próprias palavras, continuou: - Agora o interessante: são duas pancadas. Você tinha visto?
Harry apontou para uma parte ainda sangrenta do crânio de Sofia, e Enzo balançou a cabeça. Não haviam analisado o corpo ainda, mas ele sabia que tinha algo de errado ali. Só não queria acreditar.
— Merda— pestanejou.
Harry sentiu a garganta seca clamar por uma dose de bebida.
— Ela foi assassinada.— confirmou, só para ver o chefe suspirar.— É melhor abrir um novo caso, amigo. Temos que achar quem matou Sofia.
...
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Quem Matou Sofia? (DEGUSTAÇÃO)
Mystery / ThrillerHistória vencedora do Wattys 2016! A história do detetive Harry White poderá surpreender. Longe dos clichês de policiais misteriosos, Harry é provido de um humor ácido invejável e é completamente devoto ao seu trabalho. Não tem proble...