C A T O R Z E

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     Harry White abriu a porta da pequena e aconchegante sétima casa da rua Jelf, tomando cuidado para que o rangido não fosse alto demais. Deixou o casaco no cabide ao lado da porta e acendeu a luz da sala, colocando os sapatos ao lado do tapete com os dizeres "Bem-Vindo" que Natallie tanto insistiu para que comprassem um ano antes, em uma feira de rua no centro da cidade.

     Entrou na casa escura, indo em direção à cozinha, e inspecionou o armário, buscando a garrafa de uísque que sempre guardava por ali. Assim que encontrou, abriu-a no balcão de madeira ao lado do fogão. Andou até a sala e se sentou no sofá, encarando a televisão apagada à sua frente. Seus olhos pesavam cada vez mais, a garrafa de vidro em suas mãos escorregando por entre os seus dedos, aos poucos. O cansaço atingia seu corpo em várias escalas diferentes, cada vez maiores, fazendo-o se inclinar para a frente quando quase não existia forças para mantê-lo desperto.

     A porta rangeu e ele abriu os olhos, encontrando Natallie entrando em casa com algumas sacolas nas mãos. Já passava das nove da noite, e ele sinceramente achava que ela estaria dormindo numa hora daquelas, mas estava ali, atrapalhando-se com as compras recentes.

     — Harry? — ela chamou, vendo o casaco no cabide. — Chegou cedo!

     Harry levantou do sofá, deixando a garrafa sobre a mesinha de centro para ajudá-la a carregar o peso que trazia. Levou as sacolas até a cozinha e colocou-as no balcão, depositando um selinho demorado nos lábios da esposa.

     — Achei que daria tempo de fazer o jantar antes de você chegar — disse apressada, começando a tirar as compras da sacola. Harry puxou-a pelo braço e a envolveu pela cintura, sorrindo quando seus olhos se encontraram. — O que foi? — ela perguntou, confusa. — Hoje é a minha vez, não é? Ou estou confundindo os dias de novo?

     Natalie tinha gotas de chuva nos cílios e mordidas recentes nos lábios pintados de rosa. Todas essas coisas eram características que sempre a acompanhavam, de uma maneira ou de outra, tão certas quanto o fato de que o sol iria nascer no dia seguinte.

     Harry a beijou demoradamente, quase não conseguindo se lembrar da última vez que fizera aquilo com tanta calma, apreciando o momento. Naquele dia, em especial, chegar cedo em casa e perceber que Natallie não estava lá o assustou, porque muitas vezes o vazio daqueles cômodos o amaldiçoava. Como um trauma nascido há quinze anos — que nunca, de fato, morreria.

     — Hoje eu faço o jantar — sussurrou.

     Natalie passou os braços ao redor do pescoço do marido e sorriu. Eram raros os momentos em que os dois tinham um tempo para ficar juntos. Harry estava sempre ocupado demais com a polícia, e Natalie, por sua vez, continuamente enrolada no cargo de enfermeira que ocupava no Hospital público de Londres. Ambos tinham horários puxados e horas extras, mas ela gostava do que fazia e sabia, no fundo, que ele também. Por isso nunca pensaram em abandonar nenhum dos cargos.

     — Vou tomar um banho — ela disse, beijando-o mais uma vez. Afastou-se e tirou o casaco pesado que começava a esquentar demais o seu corpo.

     Já subindo as escadas, ela parou para ver o marido espiar as sacolas. Sorriu e virou-se, mordendo o lábio inferior ao dizer:

     — Se eu gostar desse jantar, faço o almoço por uma semana.

     Harry desviou os olhos para a mulher, vendo os longos cabelos úmidos dela caírem pelos seus ombros. O sorriso maroto que estampava os lábios dela distraiu-o por um ou dois segundos, mas ele logo retomou consciência, rindo para a provocação descarada da esposa.

     — Você sempre gosta de tudo o que eu faço — foi o que respondeu.

...

     — Você está atrasado! — Angelina chiou, olhando o relógio de pulso enquanto batia um dos pés no chão.

     Harry tinha acabado de chegar, correndo para que a bronca não fosse tão grande quanto ele merecia. Seus cabelos castanhos estavam despenteados e a camiseta amassada, um cigarro pendia em seus lábios.

     — Eu sei, me desculpe — ele começou o seu discurso costumeiro. — Não vai acontecer de novo.

     Angelina ficava mais brava ainda quando ele fazia aquele tipo de coisa. Era como se White claramente a desmoralizasse, fazendo promessas que nem ao menos pretendia tentar cumprir. Ela bufou e arrancou o cigarro dos lábios dele, jogando-o no chão.

     — Não fume — e amassou o objeto com a sola das botas.

     — Bom dia, Angie — usou o seu melhor tom sarcástico. — Dormiu bem?

      — Na verdade, não — ela respondeu, a voz com menos raiva e mais indignação. — E você, White?

     — Eu não dormi essa noite — sorriu malicioso.

     Angelina estreitou os olhos, não entendendo muito bem, demorando um ou dois segundos para finalmente desvendar o sorriso sujo de White. Ela produziu algum som de incredulidade, empurrando-o pra longe, a raiva voltando junto com a imagem que ela preferia nunca ter apossado a sua mente. Andou para longe dele, saindo do escritório.

     — Angie, eu tava brincando! — Harry foi atrás dela, rindo enquanto ela continuava andando. — Você sabe que é a única na minha vida!

     Steven e David riram quando viram a cena, deixando óbvio o fato de que era realmente difícil para Angelina ser a única mulher daquele lugar. Eles deveriam estar no consultório de Louise em dez minutos, mas se atrasariam pela irresponsabilidade de Harry, que, ao invés de se desculpar, fazia piadas sobre o assunto.

     — West — ela bateu na porta aberta do chefe.

     Enzo estava sentado atrás da sua mesa. Tinha acabado de desligar o telefone e avaliava alguns papéis, mas parou o que estava fazendo para mandá-la entrar. Angelina deu alguns passos em direção a ele, mas não sentou quando o homem ofereceu a cadeira do outro lado da mesa.

     — Você pode arrumar alguém pra ir com Harry no consultório de Louise? — pediu. — Eu sinceramente não estou com paciência pra ele hoje.

     Enzo suspirou. Era sempre o Harry. Ele  parecia aquele irmão mais novo do qual todos reclamam — o que dá detergente para o mais novo beber; o que empurra o amigo de cima da escada; o que sempre fala algum palavrão ou taca bolinhas de papel na professora. 

     Harry era sempre o problema.

     — Steven e David estarão a tarde toda na casa dos Norton, acertando algumas coisas daquele lado da investigação — ele praticamente lamentou. — Faça esse esforço, só hoje.

     Angelina cruzou os braços. Era teimosa como só Harry White poderia ser, mas tinha um orgulho inabalável, diferente do homem. Ela olhou para os lados, como se pudesse achar alguma saída por entre os vasos de plantas e os quadros com cartas de recomendações da sala do chefe, mas não encontrou nada.

      — Eu juro que se houver qualquer deslize, chefe, eu o mato — disse, e Enzo não pôde evitar sorrir.

     Então Angelina saiu da sala, tentando se lembrar de alguns exercícios de paciência que havia aprendido no Youtube.

...

CONTINUA


Quem Matou Sofia? (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora