O I T O

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     Quando finalmente conseguiram deixar as redondezas do prédio de Sofia para encerrar aquele fatídico dia de investigação, Harry White tinha a cabeça mergulhada em pensamentos tão aleatórios quanto centrados — a maioria, claro, referentes ao mistério envolvendo a morte da primogênita dos Spilman. 

     Como poderiam provar, depois daquele último depoimento, que havia sido um assassinato?Matthew Horran não sabia o estrago que havia feito para toda a investigação ao dizer não ter visto Sofia cair da sacada de seu prédio. Harry tinha ciência que não poderia pedir para que ele mentisse, mas, depois das palavras do atendente, as coisas ficaram bem mais difíceis. 

     Era como se o caso não passasse de um estranho suicídio. A sorte, mesmo que só para aquele detetive desesperado, era que o corpo de Jared Norton havia sido encontrado e agora havia mais uma morte para sustentar a teoria de um assassinato.

     Harry ascendeu outro cigarro, sabendo que devia estar parecendo um perfeito viciado naquela noite. Acompanhou Angelina até o seu carro, que tinha sido estacionado em um ponto diferente do quarteirão, próximo ao pátio onde o corpo de Jared havia sido deixado, e então andou até onde o seu Dodge Charger jazia seguro e afastado da confusão da cena do crime. 

     A noite não deveria ser calma, mas Londres ainda parecia estar de luto e, naquele momento, um raro ápice de serenidade ocupava a rua úmida onde o velho e sujo carro de Harry White esperava o seu dono retornar. Não se ouviu ruído algum do centro enquanto o detetive procurou as chaves nos bolsos do sobretudo negro que sempre usava, mas a fumaça do cigarro preso em seus lábios atrapalhou sua visão, e ele acabou deixando a chave cair. 

     Com aquele farfalhar, finalmente as estranhas da cidade começaram a ganhar vida, e foi como se Londres estivesse esperando aquele específico descuido para reagir ao mórbido caos em que a colocaram.

     Em um segundo, o silêncio não era mais sinônimo de paz.

     Na verdade, Harry pensou, nunca fora.

     — Senhor White?

     O detetive havia visto a segunda entidade no momento em que levantara com as chaves do carro nas mãos, mas não foi por causa do reflexo repentino estampado no vidro sujo do carro que ele se assustou. 

     O que causou o susto foi o conjunto de características dentro daquele reflexo. 

     — Constance Spilman, presumo.

     Ela balançou a cabeça em um movimento quase imperceptível.

     — É um prazer, detetive. Por mais que eu o tenha visto na TV, é gratificante conhecer o responsável pelo desempenho do famoso Caso Ryan pessoalmente. Seu trabalho é... admirável.

     Harry estreitou os olhos. Toda aquela carga de elogios era suspeita demais para sair da boca de uma mulher como Constance Spilman. Era óbvio que ela queria alguma coisa. E se fosse qualquer outro dia, com qualquer outro caso, o detetive daria um sorriso convencido o suficiente para deixar Constance sem reação, entraria no carro e iria embora

     Mas a citação ao Caso Ryan o fez perder todo e qualquer tipo de falsa simpatia. 

     — Sou parte de uma equipe inteira que trabalhou no caso, senhora. Por que se interessa por ele? Aqueles foram péssimos dias para Londres.

     O sorrido no rosto dela foi mínimo.

     — Eu só achei o que fez muito corajoso, senhor White. E também devo dizer que lamento pelo resultado final da investigação como um todo. É triste quando vidas inocentes são perdidas. E você... bem, saiu prejudicado. Muito.

     — O que isso tem a ver com a sua filha? — resolveu cortar o assunto.

     Harry estava na profissão há tempo suficiente para saber que existia um padrão, então parara de se importar em se iria parecer rude ou não. Estava cansado e queria ir para casa, tomar uma garrafa inteira de whisky e dormir. Não tinha tempo para o luto alheio, e Constance o estava atrasando. Era melhor que ela fizesse logo o seu discurso de mãe perdida; que pedisse para que ele encontrasse o assassino de sua filha acima de qualquer custo.

     — Eu só queria saber se o caso de Sofia estava em boas mãos. Sei da sua reputação. Ficarei mais tranquila assim.

     Dessa vez, o sorriso veio dele. Um típico sorriso White.

     — Eu preciso ir, Sr. Spilman. Mas se eu puder ajudar em alguma coisa, pode me ligar.

     Ele não deu um cartão a ela. Era uma falsa cortesia.

     Harry voltou ao carro. A fechadura na porta sempre precisou de certos truques para ser aberta, mas até mesmo ela cooperou naquela noite.

     — Na verdade, há algo no que você pode ajudar, sim — a voz de Constance causou uma sensação estranha em Harry. — Eu quero que você encontre o assassino da minha filha, senhor White.

     Ele virou já impaciente.

     — É o meu trabalho, caso não tenha notado. Sou pago pra isso.

     — Não — ela riu do sarcasmo do homem. — Eu quero que encontre o assassino para mim, não para eles. Quero que me traga a pessoa que tirou a minha filha de mim. Eu vou te pagar o que for preciso, e quando você achar o assassino, não o mandará para a cadeia; você o trará direto para mim.

     Havia algo na voz dela... Algo que fez Harry White precisar soar rude e preocupado:

     — Não posso fazer isso. Meu trabalho é levar o suspeito à julgamento.

     — Acho que você não está entendendo... — ela se aproximou mais. Seus olhos transformam-se em fendas, ameaçadores. Harry não recuou, mas também não fez nada para impedir que ela continuasse: — Estou oferecendo um acordo amigável. Você não irá me querer como sua inimiga. 

     Ela colocou uma das mãos dentro do casaco que vestia e automaticamente White recuou. Era uma reação típica de quem trabalhava há muito tempo na sua profissão, e foi quase vergonhoso quando nenhuma arma ou ameaça saiu de dentro do bolso de Constance Spilman. 

     Era só um cartão.

     — Me ligue quando pensar melhor — aconselhou ela — E eu sei que você vai. Caso contrário, farei o que for possível para que todos saibam o que realmente aconteceu no trágico Caso Ryan.

     Harry White deixou o cigarro cair de seus dedos. A chama insignificante bateu contra o concreto da calçada e morreu quando Constance pisou sobre ela. Ela olhou para Harry e quase sorriu, como se quisesse parecer amigável, mas todas as chances de algo pacifico começar entre os dois tinha acabado assim que ela ditou sua última frase.

     Harry tentou falar, mas sua garganta seca e sedenta por qualquer tipo de líquido alcoólico impossibilitou-o de emitir uma palavra sequer. Constance disse algum "boa noite" extremamente casual para a situação e, então, saiu em passos tranquilos, perdendo-se alguns metros adiante, dentro da escuridão causada pela falta de postes de luz. 

     Deixou para trás apenas a cabeça confusa de um policial cansado demais para lidar com uma situação como aquela.

     E o questionamento de como Constance Spilman, no meio de todas as pessoas das quais ele escondeu a verdade, poderia saber o que realmente acontecera no Caso Ryan?

...

Quem Matou Sofia? (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora