Escuridão

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Aerin

Sentia o gosto metálico e pungente de
sangue em minha boca. Os sons de gritos, ossos se quebrando e carne dilacerando eram a única lembrança que tinha quando abri os olhos.

Escuridão. Era o que via e o que não via, apenas escuridão.

Se não pelas estrelas no céu longínquo não saberia que estava a céu aberto e que a noite caía ao meu redor. Não com a tontura que sentia.
Minhas sombras se agitaram assustadas, mandando alertas de perigo, mas a primeira coisa que assimilei foi a dor.

Dor crua e dilacerante.
Puxei o ar com dificuldade, sentindo os pulmões arderem e os cortes e pancadas em meu corpo doerem, mas não era deles que aquela dor torturante vinha.

Me forcei a sentar, sentindo a grama molhada pelo orvalho, levei a mão a boca no mesmo instante para sufocar um grito que saiu de minha garganta.

A dor vinha de minha asa esquerda. Quente e torturante. Sufoquei mais gritos quando a mexi de leve, tentando ver o tamanho do estrago.

Lágrimas quentes desceram pelas minhas bochechas ardendo a medida que cerrava os dentes trincando o maxilar. Estreitei os olhos forçando a visão sob a luz da lua cheia para ver o ferimento em minha asa Illyriana.

Um corte que transpassava músculo e tecido descia na diagonal na parte do meio de minha asa. O sangue ensopava toda a sua extensão, assim como minha roupa justa de couro e meus cabelos escuros.

Enxuguei as lágrimas com força com as mãos trêmulas, e me forcei a levantar tentando aguçar os sentidos e me livrar da tontura e da náusea, que pareceram piorar quando me levantei com esforço. Minhas pernas fraquejaram, e nem séculos de treino de combate foram suficientes para impedirem a dor muscular que me acometeu.

A dor queimava como fogo em brasa, e os passos que dei em seguida foram como estar sendo cortada e curada diversas vezes no mesmo lugar.
Me apoiei em uma árvore alta cambaleando, e me concentrei em descobrir onde estava.

Depois que me perseguiram buscando algo que só pertencia e respondia a mim, depois que dilaceraram minha asa e deixaram mais cicatrizes que nem o poder Feérico curaria por completo, eu desabei. Caí na escuridão que conhecia tão bem como se fossem minhas próprias sombras.

O meu próprio poder.

O som de água corrente ficou nítido em meus ouvidos, e forcei os olhos para ver o rio que corria a poucos metros de onde estava.
Isso era um bom sinal. Sem condições de voar, teria que me forçar a caminhar, e seguir o rio provavelmente me levaria a algum lugar civilizado.

Saí do encosto da árvore e senti as pernas bambearem, mas não hesitei para começar a dar passos frágeis e dolorosos. Dobrei a asa direita de encontro as minhas costas, e mantive o máximo que podia a esquerda imóvel, deixando a dor passar e não me concentrado nela.

Os poderes de cura Feérico e meu poder antigo não puderam fazer muito para curar os ferimentos espalhados pelo meu corpo. Não quando a maioria deles fora feito por lâminas embebidas por veneno, capaz de inibir os poderes de cura, e afetar o meu próprio poder.

Fora feito especialmente para mim.

Acreditei que ainda respirava por ter nas veias um poder que só a mim pertencia. Único. Primitivo. Mas agora, ameaçado, pois o queriam tirar de mim.
E eu não deixaria, moveria céus e infernos se fosse necessário, mas não tirariam o que a mim fora concebido. O que me tornava cruel e piedosa na mesma medida.

As sombras ainda atentas, se espalharam entorno de meus braços, se esgueirando para as pontas das asas. Pude senti-las mais densas, mais profundas, enquanto sussurravam segredos que só Encantadores de Sombras podiam entender.

Ficaram inquietas quando uma ponta de consciência me aterrorizou, me fazendo pensar se voltaria a voar. Queria gritar com o pensamento, mas não podia, não sabia onde estava. Sabia apenas que estava correndo perigo e que precisava me curar.

A dor de pensar em não voar novamente, ver as montanhas de Illyria, o mar e as cortes, e toda a imensidão de Prytian do alto, assim como sentir a noite estrelada me abraçando, foi tão forte e sufocante quanto a dor do corte que descia em minha asa.

Balancei a cabeça em negação, não suportando e não querendo pensar na possibilidade de nunca mais voar, e usei o resquício de poder que ainda não havia me deixado enquanto caminhava com dificuldade, mandando as sombras me contarem onde eu estava. Vagarem por entre as árvores altas e densas, e descobrirem aonde eu havia parado.

Um sussurro frio e familiar soprou em meus ouvidos.
Estamos no Rio Sidra. Na Corte Noturna.

A Corte Noturna.

Isso não era possível. Mas minhas sombras nunca erravam.
O Rio Sidra banhava Velaris, mas eu não podia estar aqui, estava a quilômetros desta Corte quando me perseguiram a horas, ou dias atrás. Não sabia a quanto tempo estava desacordada.

Mas minhas sombras eram poderosas, e talvez elas tivessem me trazido aqui. O motivo era um mistério que descobriria quando estivesse curada.
Mas sabia que minhas Sombras e meu poder subjugavam até mesmo os poderes do Grão Senhor, isso quando o que corria em minhas veias era mais antigo. Poderoso.

Continuei caminhando, deixando a dor passar, e não a sentindo verdadeiramente, como as Valquírias faziam séculos atrás, e me concentrando em chegar a cidade. Suor escorria pelo meu pescoço e molhava meus cabelos na nuca com o esforço.

Eu nunca havia estado verdadeiramente em Velaris. Apenas minhas Sombras em busca de informações. Mas havia sido suficiente para saber sobre a existência do círculo íntimo e a Casa do Vento, cede de Velaris.

Ainda assim, eu conhecia muito pouco, e eu seria uma ameaça assim que colocasse os pés na cidade.
Eu era desconhecida por todos, exceto pelos que queriam minha cabeça e meu poder. Mas eu estava fugindo a muito tempo e a hora de acabar com isso estava chegança.

Não sabia por quanto tempo havia me arrastado enquanto minha asa sangrava, e meus olhos ardiam, quando vi luzes tremeluzentes metros a frente, e o dia começava a amanhecer, deixando o ar gelado um pouco mais ameno e com os sons de pássaros.

As árvores, antes densas, agora se espassavam a medida que a cidade ainda adormecida e se erguia logo a frente.
Resisti a vontade de cair de joelhos quando meus pés dormentes tocaram o calçamento, mas mal tive tempo de assimilar o que estava acontecendo quando senti uma adaga afiada em minha garganta.

Retesei os músculos trincando o maxilar quando a dor em minha asa reverberou pelo meu corpo inteiro em pontadas que pareciam tortura. Minha visão estava turva, mais além daquele que prendia a adaga em meu pescoço havia mais alguém alguns passos em minha frente.

Poderiam ser asas o que estava vendo ao redor da silhueta alta que via, mas minha visão estava turva demais para distinguir se era um Illyriano ou qualquer outra criatura perversa para me levar enfim, ao encontro da morte.

Senti as Sombras se agitarem e apertarem meus pulsos. Havia algo familiar me rondando, mas não era algo que me pertencia.

Alguém falou, mas não tinha certeza se era o homem que me mantinha sob o fio da lâmina afiada. As vozes eram fragmentos que não conseguia distinguir, e o ar pareceu ficar mais pesado quando tentei respirar.

- ... irmão as suas sombras est.. - foi o que escutei no fundo da mente antes de meus joelhos cederem e eu cair.

O impacto no chão duro nunca veio. Alguém forte me segurava e minhas Sombras sussurravam freneticamente fazendo minha cabeça doer.
Minhas pálpebras pesaram e caí na escuridão quando se fecharam.

Herdeira das Sombras  | Azriel |Onde histórias criam vida. Descubra agora