Prólogo

1.5K 105 111
                                    


Vejo o sangue respingar no meu rosto, que escorre um pouquinho para dentro da minha boca, e sinto de imediato o seu gosto suave e metálico se alastrar na minha língua. Minha roupa, que certa vez foi branca, agora está manchada com esse fluído corporal vermelho-vibrante. O sangue do meu pai estava por todo o meu corpo. Eu não consegui esboçar nenhuma reação com a sua morte, ainda mais porque... Eu o matei.

Queria eu ter consciência dos meus atos errados, mas não tenho. Talvez eu tenha puxado isso da minha mãe, que também não teve consciência dos seus atos ao me abandonar com um pai que é dependente químico para realizar um trabalho no qual ela nunca contou sobre, para no fim, acabar falecendo. Ela nem sequer parava em casa. 

Logo depois de receber a notícia da sua morte, houve rumores de que ela era uma assassina de aluguel profissional, contratada por uma família que também trabalhava neste mesmo ramo. Não demorou muito para a ficha cair depois que eu descobri que tudo isso não passava de fatos. Desde então, tomada pelo rancor que me domina até os dias de hoje por causa da minha mãe, sigo o mesmo caminho que ela tomou.

Devo admitir, isso acabou sendo mais fácil do que eu imaginava. Manusear uma faca se tornou brincadeira de criança para mim. No começo, foi assustador, mas quanto mais sangue eu fazia jorrar diretamente das carótidas de minhas vítimas, mais excitada eu ficava. Principalmente quando — há 8 anos atrás — eu sofria bullying de alguns garotos da escolinha. O que mais me arrasou foi descobrir que meu crush de infância, Iori, também falava coisas maldosas pelas minhas costas, mesmo me tratando tão bem na minha frente, sendo a causa da minha quedinha por ele. Me mudei de escola, o tempo passou, e há exatos 2 anos atrás, tive minha gloriosa vingança. Meu primeiro alvo: Iori.

Em apenas 24 horas, consegui descobrir tudo sobre seu paradeiro e a vida que levava todos os dias. Fiz uma visitinha a sua casa enquanto seus pais não estavam, e assim que fez contato visual comigo ao abrir a porta, encravei um estilete no seu peito, diretamente no coração. No mesmo momento, sorri para ele, mas tudo que ele me devolveu foi um olhar arregalado e desesperado, caindo de costas logo em seguida. Observei seus últimos momentos sentada bem ao seu lado. Sem tirar os olhos de mim, ele arquejava fortemente enquanto sua boca abria e fechava, como se tivesse tentando dizer algo, mas o sangue que ele cuspia o atrapalhava. 

Ah, aqueles olhinhos verdes. Que baita desperdício. Uma pena que eles nunca mais poderão me atiçar como antes.

Minutos depois, vendo que seu corpo não se mexia mais, arranquei meu estilete do seu peito, me levantei do lugar e fui embora, fechando a porta atrás de mim. Nos dias seguintes, fiz o mesmo com todos que me machucaram. Todos. Não posso dizer que amo essa decisão que tomei na minha vida, mas como uma boa filha, eu precisava herdar o trabalho da família, não é? Às vezes eu sinto como se eu tivesse nascido para isso.

A morte do meu pai não foi nada mais do que merecida. 

Vê-lo fumar tanto me fez odiar todas as pessoas que fumam. Se alguém fumar do meu lado, vai ser preciso eu segurar a minha vontade de dar um soco no meio de seu nariz.

Ele não falava na minha frente, mas eu ouvia meu pai dizer aos seus fornecedores que eu não passava de um erro, que não era para mim ter nascido. Deste modo, a mamãe não teria pegado tão pesado no trabalho para conseguir dinheiro para me sustentar, e ele também não teria perdido a sua esposa na sua última missão, porque na época meus pais eram muito jovens para ter sequer noção do que iria resultar ao ter relações sexuais sem proteção. 

De qualquer forma, meu pai iria morrer uma hora ou outra, pois quando eu o encontrei na sala, ele estava no meio de uma overdose. Apenas aliviei a sua dor, adiando a sua visita ao inferno. Não duvido que logo o encontrarei. Só assim a família finalmente estará reunida.

Minha mãe sempre me dava umas indiretas a respeito do seu trabalho, mas eu era muito nova para entender. "É matar ou morrer", "Se as pessoas não têm piedade de nós, por que nós iríamos ter delas?", "Às vezes a vida te apunhala pelas costas, mas se sobreviver, apunhale de volta sem misericórdia", dizia ela. Essas frases não faziam sentido algum para mim.

Será que esse foi o motivo da morte dela? Ela hesitou ao assassinar o alvo, e por esse motivo, a família que ela trabalhava a matou? Talvez eu nunca tenha a resposta para as minhas perguntas.

Às vezes me pego pensando se isso é realmente o certo, mas o que eu poderia fazer neste momento? Quem iria contratar uma garota 16 anos que acabou de ser órfã nesta ilha miserável que não tivessem segundas intenções? Os assassinatos eram a única forma de arrumar grana. Por um lado, eu estava fazendo um favor para esta ilha de merda. De qualquer forma, eu não tive escolha. O mundo nem sequer me deu opções.

Após pegar mais algumas coisas de que precisarei e colocá-las em minha mochila, quando eu estava indo em direção à saída, eu parei de andar. 

Há um espelho perto da entrada de casa. Olho para o meu reflexo, mas tudo que consigo ver é uma garota com anos de angústia acumulada. Meu cabelo está desgranhado, olheiras pouco visíveis embaixo dos meus olhos e o sangue no meu moletom já está seco. Também há sangue seco no meu rosto e até mesmo no meu cabelo. Eu não fazia ideia do quanto eu estava suja até me olhar neste espelho. A minha sorte de morar no lado isolado da ilha é que não vai ter ninguém para testemunhar o meu estado e as atrocidades que cometi há pouco tempo.

De pé na porta, olho para trás novamente. Para o corpo do meu pai estirado no chão. Há tantas memórias nesta casa que eu gostaria de esquecer... e eu vou esquecer. Saio de casa e fecho a porta. Com poucos passos caminhados, enfio a mão no meu bolso, retirando o isqueiro do meu pai. O isqueiro que tantas vezes eu vi meu pai o usar para acender seu baseado e dar uma tragada com gosto logo em seguida.

Preciso passar o polegar na rodinha do isqueiro algumas vezes antes de finalmente conseguir acendê-lo, e então, jogo-o para trás. Poucos segundos depois do isqueiro cair no chão, ouço o barulho do fogo subir, provavelmente começando a se espalhar pela casa. O som do fogo crepitando ficava mais alto a cada momento, juntamente com o cheiro de fumaça que estava começando a impregnar todo o local.

Nesta casa, deixo para trás cada lembrança, cada medo, cada dor e cada prova de que eu sequer tenha existido neste mundo. Abandonarei esta ilha de merda para começar meus dias em Zaban, cuja cidade falada nos arquivos escondidos da minha mãe, junto com uma carta que ela deixou para mim e eu a encontrei por acaso.

De repente, por algum motivo, meus olhos começaram a ficar marejados. Então, olho para trás novamente.

Em Zaban será o recomeço da minha nova vida? Ou será apenas o início para as desgraças que este mundo está guardando para mim?

Adeus ilha, adeus casa, adeus... mamãe e papai.

Desde então, aquela foi a última vez que eu chorei

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Desde então, aquela foi a última vez que eu chorei.

Sharp Love - Killua x Leitora [Hunter x Hunter]Onde histórias criam vida. Descubra agora