9. Soturno

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Sotutno

          O quarto frio e escuro o abraçou tão logo P'Chan despertou cansado. O sonho se repetiu a noite toda e talvez  ele devesse desistir de tentar dormir. A sensação de que o sonho é um pedido de ajuda o abraça e ele se sente incomodado. Desliga o ar e suspira.

            Ultimamente seus sonhos são como experiências extracorpóreas e ele desperta cansado e suado com uma última frase ou imagem presa na mente.

            A cena do homem pintando seu retrato e afirmando que recorda deles não sai de sua mente. E é sempre um rosto em névoa, mas com o passar das noites vem ganhando luz e ele sabe que sempre foi o rosto de Rak.

          P'Chan não gosta de pensar em amor. Ele sabe que tem uma pedra gelada e sem vida no lugar de seu coração. Ele viveu assim,  sempre sabendo que não é nada e não merece nada de ninguém. Está feliz tendo a amizade de Pete, Vegas e Venice. Gosta do respeito que recebe  dos Theerapanyakul. Na sua longa vida, esses são os poucos laços que o afetam. E ele está satisfeito com esse presente de Budha. Para ele, essas pessoas é a prova do mais genuíno amor que recebeu em sua vida. Não lhe pedem nada e lhe dão tanto.

          Puxa os lençóis sobre si e tenta dormir mais uma vez,  mas as verdades de sua vida o assolam. Ele conhece pouco de amor. Os pais se foram desta vida sem amá-lo. É certo que eles nunca foram violentos. Nem mesmo quando  o obrigavam a ir a diversos encontros cegos. Mas também nunca supriram as suas necessidades de afeto e lar. Ele tinha uma casa rica para voltar das férias. Tinha motorista, empregados e aos cinco anos lhe deram uma secretária. Desde o dia que Murang chegou à sua vida ele se perguntou para que ele precisava de uma assessora especial. Ele preferia uma cozinheira,  já que ela poderia fazer algo que ele gostasse. Mas o menino Chan seguiu sua vida de pobre menino rico até a maturidade, sem jamais dizer uma palavra de desagrado. Aceitou o que a vida lhe deu. Talvez essa fosse sua dívida, seu carma: viver vazio de amor.

         Desistiu de dormir. O relógio mostrava que nem eram cinco horas ainda. Levantou-se, desistindo de perseguir o sono que o abandonou mais uma vez. Tomou um banho. Vestiu-se e foi andar. Mesmo que o parque seja distante, ele gosta de ir até lá. Foi de carro. Estacionou na entrada e seguiu para a guadra dr corrida.

          A manhã, ainda escura com seus sons característicos, o recebeu leve e fresca. Ele começou a se aquecer, ouvindo os sons dos pássaros nas árvores  do parque. Um alvoroço feliz de gratidão pelo novo dia. Ele sorriu um instante, sem perceber e agradeceu também. As flores espalhadas pelos jardins laterais da quadra recendiam seus perfumes suaves, ainda felizes por serem beijadas pela brisa da manhã. Um ou outro som de galhos mexidos lhe davam a certeza que os pequenos seres vivos que viviam na propriedade preservada,  faziam seu caminho de saída e volta aos seus ninhos.

         A vida estava em festa,  mesmo que seu coração estivesse oprimido.  Há algo no ar. Ele já sentiu isso antes. Já sentiu como se fosse cúmplice de alguma dor...

          De repente o cheiro de seu sonho voltou e o envolveu. Sândalo. Ele tem certeza. O mesmo cheiro que sentiu quando conheceu Rak. A imagem do jovem o invadiu de novo e seu sorriso surgiu pleno.

         P'Chan iniciou sua corrida com um trote e foi pegando ritmo. O perfume o perseguiu em todas as voltas que deu na longa quadra de corrida. Diminuiu o ritmo, acostumando o corpo ao movimento comum e se dirigiu ao lago. Ainda não tinha sol e ele tinha encontrado poucas pessoas por ali,  mas próximo as águas nunca tinha ninguém e ele quer ter um momento a sós com a Natureza. Andou até próximo à sua árvore preferida.

           No lago, proximo ao seu refúgio, ele ouviu um gemido e quando ia se afastar, percebeu que conhecia o casaco estendido na grama. Conhecia aquelas duas mãozinhas espalmadas nas costas da roupa. Eram as mãos de Venice. Ele conhece o casaco negro. Era de Vegas! O que o amigo fazia na rua uma hora dessas?

            Voltou e contornou a árvore. Um homem estava de cócoras e chorava. E não era o Theerapanyakul. Ele soube tão logo seus olhos o focaram. Era Rak.

          -   Nong? N'Rak? 

          O rapaz não deu sinal de  o ouvir. Seu gemido triste se repetia.

          -   Nong Rak?  O que houve?

           Nenhuma resposta. O jovem tremia. Chan pegou o casaco do chão e viu que estava úmido. O rapaz estava ali há algum tempo.

             Aproximou-se e o tocou. Rak ergueu os olhos turvos. Era pura dor. Um oceano escuro de  pura tristeza. O homem mais velho o ergueu e o envolveu no abraço. O jovem se aninhou ali aos prantos.

          -   Venha. Vamos para casa. Você está gelado, menino.   -   Havia preocupação no tom usado por Chan,  mas Rak não prestou atenção.  

          Rak se deixou levar até o carro e nada disse quando Chan prendeu o cinto. Só continuou vertendo lágrimas, silencioso e agora, sem gemidos.

          Chan estacionou em frente sua casa e soltou o cinto do rapaz. Mas Rak não se moveu. Ele o ajudou a sair e entrou com ele na casa. Rak obedeceu sem notar nada. Sem responder as perguntas. Sem um gemido. Só lágrimas. 

           -   Você ficou no parque a noite toda?

            -   Hum?   -  Era um gemido ou uma pergunta?

            -   Você ficou no parque a noite toda? -   Chan repetiu.

            -   Anoiteceu?   -  O rapaz parecia perdido.

            Chan o tocou de novo. O calor irritante ainda estava ali. O levou ao banheiro e colocando um pijama sobre a bancada da banheira,  ordenou:

          -   Venha. Tome um banho. Você está úmido e quente. Vou verificar sua temperatura depois que se banhar.

          Saiu do banheiro e esperou ouvir a água. Nada. Os minutos passaram lentamente. Quando decidiu voltar, percebeu que o rapaz abriu o chuveiro. Suspirou aliviado. Verificou as horas e ainda faltavam dez minutos para as seis. Não ia incomodar Vegas naquela hora. Ia socorrer o amigo dele. Afinal,  não custava nada retribuir a amizade gratuita que os Theerapanyakul lhe ofereceram durante todos esses anos, socorrendo um de seus membros.

         Rak saiu do banheiro secando o cabelo. Pareceu, para Chan, que o jovem era ainda mais desprotegido dentro do pijama mais largo que ele. Desprotegido e bonito.

         -   Vem aqui. Vou lhe ajudar com isso.   -  Mostrou-lhe um lugar na cama, ao seu lado. 

        Rak se aproximou triste,  os olhos inchados de tanto chorar. Chan secou o cabelo do outro, que por fim se deitou na cama,  desanimado.

        -   O que houve, nong?  Você pode confiar em mim.

        Por algum tempo pareceu que não obteria uma resposta. O jovem apenas suspirou fundo,  como se fosse continuar preso em si mesmo. Por fim sua voz saiu em um gemido.

        -    *Čhan ca tāy. 

        Chan não estava preparado para ouvir isso. Perdeu o passo e sentou-se na cama.

         De repente ele pensou em Akai Ito...

          Se Rak estava na outra ponta do fio, seu laço vermelho estava para se romper... Virou-se e abraçou o jovem deitado em sua cama.

           A voz triste e cansada de Rak repetiu pausadamente com todo o peso de sua dor:

           -  Pī Chan... eu vou morrer...

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O Fruto Proibido 3    #ChanRakOnde histórias criam vida. Descubra agora