Capítulo 39 - Aprendendo

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   Por mais depressa que tentava me mexer tudo parecia mover-se devagar, meus  braços, meu grito preso na garganta, ela. Virei o corpo de Heli em meio a toda a água pintada assustadoramente de vermelho, que ela se afogava e a coloquei sobre meu colo, tirando seus úmidos cabelos pretos do rosto e assistindo-a inerte cuspir a água. Faltava-lhe ar, faltava ar pra nós duas e tudo doía em nossos corpos. Cuspi em minha mão e passei no buraco em suas costas, empurrando meus dedos dentro sem pensar na dor que fez nós duas gritarmos ao luar. Ela chorava, murmurava sua dor em gemidos baixos e por mais que tentasse deixar sua cabeça sobre meu ombro, ela caia.

   Eu era capaz de sentir tudo. Tudo. Sentia meus braços ao seu redor, sentia o ardor da água em sua garganta, a dor aguda que aumentava e aumentava e como ardia, Deus como ardia quando a água lavava sua ferida. Sentia o ardor gentil em suas mãos arranhadas, o estômago dolorido dos chutes de Nobert e o tecido pesado e molhado que prendia ao seu corpo de um vestido azul, de um baile há mil anos atrás... Olhando pra cima, eu entendi, tudo se encaixou. As balas de gelo não doíam em mim porque eu sentia o que passava na pele dela, não na minha. Minha Pérola tinha evoluído a uma coisa muito maior, ali, a beira do mar, torturando-me, me fazendo sentir a morte tomando conta do corpo de Heli.

   —POR QUE NÃO ESTÁ FUNCIONANDO? — Gritei pra mim mesma. A saliva devia curá-la, como já tinha curado antes, porque não funcionava?

   —Mo... — Heli murmurou, mesmo falar nos cansava — Saliva é físico e isso — Ela ainda conseguiu erguer o braço até meu rosto — Isso é mágico.

   Era tão óbvio, o Encanto, só funcionaria com ele! Fechei os olhos pra me concentrar, o jeito mais fácil era abrindo as escamas mas minhas pernas estavam tão duras, tão impossíveis de relaxar que mesmo a água sobre elas não ajudou. Eu era uma inútil, pior que isso, eu ia...

   —Funciona! — Gritei — Funciona!

   Espremi meus olhos, balancei os ombros mas nada aconteceu e quando olhei os homens à nossa frente, que observavam tudo parados, soube que não funcionava. Eu era mesmo uma inútil... Iria deixar a pessoa que mais amava morrer por não conseguir fazer o que toda Okira fazia mesmo ao nascer.

   —É tarde demais — Heli sussurrou.

   —Não — Disse.

   Não fazia ideia de como, já que também sentia a mesma dor que ela, mas Heli sorriu. Um sorriso estranho e belo, branco, prata pela lua, vermelho pelo sangue e tão singular como só ela podia ser. Suas ruguinhas nas bochechas ainda estavam lá me prometendo que nada nela doía e seus olhos, tão escuros quanto o mar, brilhavam pra mim como se pudesse ver um futuro que jamais teria.

   —Me disseram que sereias eram mais inteligentes que humanos...

   E eu ri, droga, eu ri!

   —Para com isso! Para de me fazer rir!

   —Eu queria ver pela última vez — Ela disse, satisfeita.

   Aquilo doeu mais que mil balas de gelo na espinha. Eu queria lutar, Heli já tinha aceitado, como ela tinha aceitado tão fácil? Quis gritar com ela, ela não podia...

    —Ajudem! Por favor! — Implorei. Os homens não se moveram.

   —Eles não ligam pra mim... Eu só quero você aqui...

   —Maressa!

   —Mo... É tarde demais.

   E era. E ela sabia que era. Eu sabia que era. Sentimos juntas porque o sentimento da morte entrava pelo pequeno buraco de bala em seus costas e ocupava todo o espaço que o sangue deixava pra trás. A morte esvaziava seu corpo e o preenchia de pequenas, minúsculas paradas. Músculos ficavam dormentes, as veias bombeavam cada vez menos sangue, as pernas lutavam pra manter as sensações e enviá-las ao cérebro pelo caminho machucado. Senti Heli se apagar aos poucos em meus braços enquanto eu brilhava a pleno vapor.

O teste da Beta - FinalizadoOnde histórias criam vida. Descubra agora