A casa inteira era uma mistura de cômodos modernos tentando se encaixar a personalidades distintas e vibrantes. Não era mesmo possível que aquele bando de excluídos pudesse viver em um local integralmente padrão, sem a alma caótica daqueles que eram conhecidos como aberrações. Não faria sentido. Almofadas peludas e coloridas descansavam no sofá; tintas e respingos se escondiam pelos móveis; uma pequena coleção de insetos petrificados encontrava moradia embaixo das plantas artificiais se ramificando pelas paredes; e a cozinha tinha um ar levemente perturbado, como se a cada refeição houvesse uma espécie de duelo. A casa abraçava Wandinha, de certo modo ela sentia-se acolhida e protegida, como se aquele fosse o seu lugar... Como se fosse uma folha em branco que ela precisasse preencher com suas palavras, com sua escrita sensorialmente mórbida.
— Acho que é isso, não tem muito segredo. — Enid a chamou — Agora que conhece a casa, pode ficar totalmente à vontade para andar por onde quiser. Se precisar de algo, por favor me avise... e muito obrigada por tudo.
Wandinha assentiu para Enid, optando por tomar um ar lá fora. Sua cabeça borbulhava, reencaixando planos que perderam as chances de se realizar. A luz das estrelas sempre foi uma boa conselheira, parceira perfeita para as melodias do violoncelo, e agora para ajudar a traçar ideias para o futuro. A brisa tranquila banhou o seu rosto no instante que abriu a porta para a varanda. Seus olhos miraram na floresta agitada, mas mudaram seu rumo rapidamente para uma sombra. Quando se deu por si, a porta estava fechada, seus pés fora da sala e não havia mais chance de escapar, ele a vira. Embora fugir nunca estivesse nos seus planos.
— Eu preciso conversar com você.
A voz dele era forte, potente o bastante para penetrar seus ossos. Mas ela não se abalou.
— Não tenho absolutamente nada para tratar com você. — respondeu cortante, sem receio de ser ácida.
— Tem. E vamos tratar agora.
O ar de autoridade que Tyler passava deixava Wandinha enlouquecida de raiva.
— Quem você pensa que é para tentar me dizer como e quando farei algo? — vociferou se aproximando a ele junto as sombras.
— Eu quero te explicar como tudo aconteceu, esclarecer o que eu fiz e tentar consertar as coisas entre nós — disse Galpin, mas nem mesmo ele tinha esperanças de fazer o que havia dito, o desprezo pela gótica crescia em seu coração sem nenhum tipo de controle. — Por favor... me deixe me desculpar, Wandinha — o nome saiu enferrujado, com um gosto diferente e tristemente familiar.
A gótica sorriu sarcasticamente no escuro.
— Dispense suas mentiras. Não tenho vontade alguma de ouvi-las.
— Não são mentiras. — rebateu rapidamente.
— Não são? Quer dizer que quando você se fingia de inocente para cima de mim estava sendo sincero? Se você acha que pode continuar me manipulando com as suas palavras insignificantes está terrivelmente enganado.
O vento soprou os cabelos dos dois, sendo o único a falar em meio ao silêncio repentino de Wandinha e de Tyler. Demorou poucos instantes para as farpas voltarem a ser trocadas, a atmosfera de paz quebrada mais uma vez.
— Olha... respondendo à sua pergunta, você sabe muito bem que eu sou um Hyde. Preciso mesmo explicar aquilo que você já conhece? Caso queira que eu te diga, aqui vou eu... Sou um Hyde e tinha uma mestra que me ordenava tudo que fosse do desejo dela, eu obedecia. Uma das ordens dela era de manter meu segredo, então eu mantive. — ele falou depois de encarar a mais baixa, esperando alguma resposta certamente tóxica, vendo a sua expressão carrancuda enrijecer.
— Quando você me conheceu não queria me matar? — continuou, impaciente para ver como ele iria se justificar. Não tinha como Tyler escapar do seu passado, estava feito e nada que ele dissesse poderia apagar os fatos.
— É claro que não, eu não sabia direito quem você era.
— Então quando me beijou estava verdadeiramente apaixonado? — Addams questionou desdenhosa, arrancando surpresa de Tyler.
Ele a olhou, refletindo sobre o questionamento... relembrando quantos momentos havia pensado naquele beijo e sentido desejo por aquela mulher. Era isso que o dava mais raiva. Saber que a vida dele havia passado a girar uma parte em volta daquela criatura baixa e rancorosa que o desprezava e desejava mal a todo instante. Wandinha Addams o destruía por dentro e ele odiava a sensação. Quanto tempo mais viveria acorrentado a esse martírio? Seu olhar colidiu com o dela, cheio de violência.
— Sim... — sussurrou, se aproximando de seu corpo — Eu amava você, e odeio isso. Odeio ter sentido algo por você, não sabe como odeio...
Ambos se encaravam com uma intensidade fora dos padrões. Olhos brilhando e rostos odiosos. Dois corações batendo juntos numa coreografia bem ensaiada de rancor.
— Eu sei. — ela retrucou, se arrependendo no mesmo instante de ter admitido para Tyler que já o havia amado também. — Nunca devia ter deixado você se aproximar de mim, foi a coisa mais estúpida que já fiz na minha vida. — disfarçou.
Tyler assentiu com a cabeça, comprimindo os lábios enquanto tentava aquietar a sensação de aversão que engolia sua alma. Wandinha o observou, sem palavras para dizer, já tinha dito o suficiente. Era, de uma forma bem resumida, tudo o que Tyler representava para ela: o erro mais estúpido que havia cometido. Estava satisfeita de saber que agora ele tinha conhecimento sobre isso.
Os passos dela começaram a recuar, seus olhos perderam os dele, e por um instante ela pôde fingir que aquele encontro felizmente nunca aconteceu. Mas no mesmo ritmo que Addams deixava essa conversa de lado, Tyler se apegava ao real objetivo daquilo tudo: consertar uma pequena parte das coisas, e nem isso ele havia conseguido fazer. Talvez precisasse falar de uma maneira menos petulante, guardar seu próprio ódio para mais tarde e pedir com jeito pelo perdão dela, caso contrário as coisas estariam prestes a se tornar insuportáveis.
Sem pensar demais, Galpin tocou a mão dela, o que acidentalmente desencadeou uma visão para a gótica.
E então ela viu. "Correntes; carne rasgando enquanto sangue quente respingava nas paredes, tingindo a caverna de um tom vivo de vermelho; Tyler completamente nu, acorrentado, tremendo da cabeça aos pés depois de receber uma injeção com alguma substância reluzente; lágrimas da parte dele quando sentiu pela primeira vez sua própria pele se tornar cinzenta, seus ossos se torcerem e sua visão buscar incessantemente por morte, a última coisa que ouviu foi seu urro de dor antes de perceber que agora grunhia como um verdadeiro monstro; já não fosse suficiente, Laurel mais tarde aparecia para assediar o corpo cansado dele, logo depois de Galpin ter matado animais e descontado neles toda a raiva que sentia por ser o que havia se transformado; no lugar dos rugidos, agora a mestra exigia silêncio, a recompensa por ser um "bom garoto" havia chegado..."
Ainda com o coração batendo às pressas, Wandinha terminou sua visão. Seus olhos assustados percorreram ao redor, e não mais surpresa ficou ela quando percebeu que Tyler a tinha nos braços. A proximidade trouxe a ela memórias indesejadas, como da noite em que sentiu medo pela primeira vez estando nesse mesmo cenário: nos braços do garoto que ela amava, e que no fim a havia traído. Sentindo uma pontada no coração, se levantou rapidamente, quase caindo.— Wandinha, calma! — Tyler murmurou quando ela cambaleou, seus braços em volta dela mais uma vez para que Addams mantivesse o equilíbrio.
— Não encosta em mim. — balbuciou, enquanto corria para a porta de vidro e desaparecia dentro de casa.
Tyler a viu partir pela segunda vez, sentindo novamente uma estranha sensação se espalhar pelo seu corpo.
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Amor Sangrento
FanfictionWandinha Addams volta a Jericho, após uma pequena temporada com sua família... Porém, mal sabe ela pelo que teria que passar... Enid não devia ter omitido esse detalhe. Autora: Giugyd/Giulia S.S.S.